O LOBO DO HOMEM
Esta semana três pessoas diferentes,
em dias diferentes, me disseram que estou muito bonita. A terceira me perguntou
se fiz plástica. Não, não fiz nem tenho dinheiro para gastar com isso. Depois
dos sessenta anos de idade descobri que sou e fui bonita. Descobri, também,
outros talentos que mantive escondidos: pintura, facilidade em escrever,
habilidade em minha profissão atual, porque já passei por várias. Pela primeira
vez descobri que fui colocada neste mundo com uma enorme bagagem de talentos,
como aquela historinha do bebê e das fadas que o visitam no dia do batizado
trazendo um talento, cada uma. Depois vem a fada má que não foi convidada e estraga tudo. Como as pessoas, antigamente, eram sábias e entendiam de
psicologia!
A fada má não é apenas uma, são
dezenas, centenas de fadas e bruxas que encontramos ao longo da vida e vão apagando
cada fagulha de nossa luz, que tenta brilhar, arrancando cada pena nova do
passarinho filhote que pensa em voar.
- Você fica ai estudando desse jeito,
colecionando diplomas, não vai arranjar marido. Ninguém vai querer casar com
você.- diz a melhor amiga.
Não sei para que as pessoas estudam,
eu estudei porque me interesso pelos assuntos, porque gosto, porque a vida se
torna mais interessante, porque as curiosidades são satisfeitas, porque é
satisfatório e divertido, mas nunca faltou quem me empurrasse para baixo,
solapando qualquer ilusão que eu tivesse a respeito de minhas qualidades,
principalmente as pessoas significativas para mim a quem eu tentava, desesperadamente,
agradar.
Muitos anos atrás, estava de férias no Rio de Janeiro, um rapaz se
aproximou da mesa, todo interessado e se sentou ao meu lado.
- O que você faz? – perguntou.
- Desenho projetivo – expliquei.
Calculo as ferragens que devem ser colocadas em um edifício, o material a ser
empregado, no projeto de engenharia, respondo, inocentemente.
O rapaz olhou para os lados,
visivelmente contrafeito, deu uma desculpa, se levantou da mesa do restaurante
e foi embora, repentinamente apressado.
- O que eu fiz? Por que ele foi
embora?
A resposta, só encontrei uma semana
depois, contando o fato para uma amiga, psicóloga.
- Se você tivesse falado de sua
outra profissão, professora, ele teria ficado. Ele viu que você é desenhista
projetista e ele não é nada disso.
Eu não queria ser desenhista
projetista, eu não queria ser uma pintora famosa, eu não queria ser escritora,
eu não queria ser uma grande psicóloga. Eu só queria ser amada.
Em uma festa de aniversário
familiar, as surpresas foram se sucedendo, uma seguindo a outra: o marido da
sobrinha foi chamado ao microfone. Levantou-se, tranqüilamente, pegou o
microfone e cantou um samba sem nenhum constrangimento, nem desafinar em
nenhuma nota. Deixou o microfone lá e foi saindo na maior cara de pau, como se
estivesse acostumado com o palco. Minha surpresa foi ainda maior quando a cunhada do meu irmão mais novo, sempre tão certinha pega o microfone, as folhas da música caem no
chão e ela continua rindo, pega as músicas e na maior tranqüilidade, a calma de
quem sabe o que faz, canta Edelwaiss em
voz de soprano, notas agudas e altas, sem se preocupar com o público à sua
volta.
- Mas, ela canta? Ela sabe cantar
árias? Ela tem essa voz linda? Como é que eu nunca soube disso?
Há alguns anos atrás um cliente me
procurou. Um homem bonito, interessante, mas a pele estava acinzentada,
olheiras fundas e visíveis. Esperei a notícia de alguma doença, alguma
tragédia. Contou-me que sua namorada esperava um filho seu. Estava dopado com
remédios psiquiátricos.
Por que a perspectiva de trazer uma
nova vida ao mundo era tão arrasadora para aquele rapaz em seus quarenta anos
de vida? Que imagem ele tinha de si mesmo ou que imagem sobre si mesmo lhe fora
imposta ao longo dos anos?
Tempos depois esse mesmo homem me
pediu outra consulta e disse que pagaria o preço que eu estipulasse.
Entrando no consultório, espantei-me
com a mudança. Terno impecável e ao mesmo tempo funcional, um pano flexível,
cinza claro, as medidas certas. A pele em tonalidade saudável. Todo ele
transpirava vida e alegria. Contou-me que seu irmão mais velho acabara de
falecer. Que ele agora era o dono do negócio. Foi fazendo a sua narrativa e no
meio a revelação de que após o enterro do irmão tinha saído com os amigos para
uma cerveja. A palavra que o descreveria, na ocasião era: libertação. Não falei
nada nem tinha ninguém a quem comentar o ocorrido. Dias depois a namorada dele
me procura e menciona o fato.
- Coisa estranha! – disse – Ele
parece que ficou alegre com a morte do irmão.
O lobo do homem...O que queremos,
realmente? Ser temidos, respeitados, solapar os talentos de nossos irmãos,
nossos seres mais chegados, por sentimentos mesquinhos de inveja disfarçados em
“eu sei mais do que você, eu sei o que é melhor para sua vida, as regras devem
ser estas e aquelas” ou simplesmente deixar rolar e sermos simplesmente amados?
Não estou me referindo à permissividade que deixa um adolescente ou criança
criar as regras da casa levando a uma possível marginalidade futura, mas falo
de talentos, de inteligência, de beleza que deviam ser estimulados e não
abafados. Para se dirigir um carro é preciso tirar carteira de motorista,
certo? É preciso conhecer as regras de trânsito para a própria segurança e dos
demais. Em uma família os pais devem ditar as regras e não as crianças,
simplesmente por uma questão de competência e experiência. Falo do cônjuge que
descobre talentos e habilidades depois da morte do companheiro, que o podou
amorosamente anos a fio. Falo de mulheres submissas e apavoradas que não dizem
uma só palavra em uma sala cheia de pessoas amigas, mas que pegam um microfone
e falam em público, com desembaraço, depois da morte do marido.
Talentos que
parecem nascer repentinamente quando o parente mais chegado se vai, levando
consigo a repressão e todos os medos associados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário