sábado, 24 de novembro de 2012

Condomínio: A técnica do não foi

A técnica do não foi
ou o adolescente de cinqüenta anos.

            O eletricista havia chegado para fazer a instalação das lâmpadas de Natal no jardim. Fiquei ao seu lado, ajudando, mostrando onde as lâmpadas deviam ser colocadas e onde estava o relógio responsável pela iluminação do jardim. Fomos à primeira portaria, abri a porta do painel, acendi a luz e voltamos ao jardim.
            Depois de instalar algumas lâmpadas, ele fez o teste e nada aconteceu: continuaram apagadas.
            - Não entendo o que houve: as lâmpadas não acendem, ele disse.
            Voltei à portaria e vi que alguém havia desligado o relógio. Voltei a ligar a luz e retornei ao jardim.
            Ele continuou o trabalho, colocando o restante das lâmpadas nas árvores e plantas. Depois de tudo pronto, nova tentativa e ... as lâmpadas continuaram apagadas.
            - Mas, não é possível! ele disse.
            Pela terceira vez voltei à portaria, abri a porta do painel onde ficam os relógios de todos os apartamentos e mais uma vez constatei que a luz da portaria havia sido apagada.
            - Quem fez isso?
            Usei o método do não foi. É um método infalível. Como funciona? Ele funciona através da exclusão: são três apartamentos naquela portaria. Vamos começar pelo terceiro andar: Não foi o casal que mora no terceiro andar, porque são adultos, trabalham e não tem tempo para brincadeiras. Vamos ao segundo andar: Não foi ninguém de lá porque os moradores são idosos e só descem as escadas quando necessário. E o primeiro andar? Sobrou o primeiro andar.
            Subi os cinco degraus da escada, apertei a campainha.
            D. Olga atendeu.
            - Fala com o Jô para não apagar as luzes da portaria porque estamos trabalhando com as lâmpadas de Natal no jardim. – falei.
            - Aqui ninguém apagou as luzes. – ela respondeu, indignada. Ela estava trabalhando na cozinha, perto da porta dos fundos e Jo estava saindo e entrando pela porta da frente.
            - Sei - respondi e voltei ao jardim, depois de acender, mais uma vez, a luz.
            Jô é um adolescente de cinqüenta anos de idade, perito em atormentar as pessoas, humilhar os empregados e criar problemas com o condomínio. A razão disso é que tem tempo sobrando: desconhece o significado da palavra trabalho e vive às custas da mãe, viúva.
            O problema se resolveu. As luzes de Natal, finalmente se acenderam.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Descobri que falo grego

                                                    Descobri que falo grego

 

         Há cerca de seis anos atrás encontrei alguns meninos de rua brincando com uma calopsita, puxando a coitada pela perninha enquanto ela tentava fugir. Um casal viu aquilo e a mulher comentou:

        - Esse pássaro é caro. Olha o que os meninos estão fazendo com ele.

        Sem pensar em nada, com quem eu estaria lidando, só vi o bichinho sendo maltratado. Estendi a mão e peguei a calopsita, que, em lugar de agradecer enfiou o bico na minha mão. Foi bem doloroso. A mulher me entregou uma folha e disse para eu colocar no bico dela. O dedo sangrou.

        Enquanto eu me encaminhava para casa, um dos meninos me seguiu.

        - Ele é meu, fui eu que achei! - disse

        Expliquei que ia cuidar do pássaro, dar comida e água e ele se conformou. Depois pensei que tinha sido precipitada, eu devia ter negociado, dado algum dinheiro aos meninos...

        Coloquei a calopsita em uma gaiola e meus gatos passaram o dia olhando para ela, fascinados. Não fizeram mais nada o dia inteiro. Liguei para o faz-tudo, meu eletricista-bombeiro-encanador- azulejista, etc, que quebra todos os galhos domésticos para ele fazer uma adaptação, colocar uma cordinha com roldana para facilitar a subida e descida da gaiola. Comentei que minha gata Safira podia até pegar o pássaro dentro da gaiola. Sai por um momento e vi o José tentando se esconder no banheiro.

       - José, por que você está se escondendo no banheiro de empregada? - perguntei.

       - É porque você disse que a gata é brava - ele respondeu.

       - Mania que as pessoas tem de pensar que gato é igual tigre, que pula no pescoço das pessoas. Gato cuida da própria vida. E eu não disse que ela é brava - falei.

       - Disse.

       - Não disse.

       - Disse.

       - Está bem, mesmo que ela seja brava não está interessada em você. Está interessada no passarinho. - falei.

       Ele saiu do banheiro e entrou no quarto de empregada, onde meus gatos estavam. Minha gata Safira, que é mansa, lerda, de bem com a vida, de repente, ao vê-lo se aproximando, se arrepiou toda: das costas ao rabo, que ficou lindo, enorme.

       É o poder do medo e da crença humana, capaz de influenciar até o comportamento animal.

      

      

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O lobo do homem


O LOBO DO HOMEM

            Esta semana três pessoas diferentes, em dias diferentes, me disseram que estou muito bonita. A terceira me perguntou se fiz plástica. Não, não fiz nem tenho dinheiro para gastar com isso. Depois dos sessenta anos de idade descobri que sou e fui bonita. Descobri, também, outros talentos que mantive escondidos: pintura, facilidade em escrever, habilidade em minha profissão atual, porque já passei por várias. Pela primeira vez descobri que fui colocada neste mundo com uma enorme bagagem de talentos, como aquela historinha do bebê e das fadas que o visitam no dia do batizado trazendo um talento, cada uma. Depois vem a fada má que não foi convidada e estraga tudo. Como as pessoas, antigamente, eram sábias e entendiam de psicologia!
            A fada má não é apenas uma, são dezenas, centenas de fadas e bruxas que encontramos ao longo da vida e vão apagando cada fagulha de nossa luz, que tenta brilhar, arrancando cada pena nova do passarinho filhote que pensa em voar.
            - Você fica ai estudando desse jeito, colecionando diplomas, não vai arranjar marido. Ninguém vai querer casar com você.- diz a melhor amiga.
            Não sei para que as pessoas estudam, eu estudei porque me interesso pelos assuntos, porque gosto, porque a vida se torna mais interessante, porque as curiosidades são satisfeitas, porque é satisfatório e divertido, mas nunca faltou quem me empurrasse para baixo, solapando qualquer ilusão que eu tivesse a respeito de minhas qualidades, principalmente as pessoas significativas para mim a quem eu tentava, desesperadamente, agradar.
         Muitos anos atrás, estava de férias no Rio de Janeiro, um rapaz se aproximou da mesa, todo interessado e se sentou ao meu lado.
            - O que você faz? – perguntou.
         - Desenho projetivo – expliquei. Calculo as ferragens que devem ser colocadas em um edifício, o material a ser empregado, no projeto de engenharia, respondo, inocentemente.
          O rapaz olhou para os lados, visivelmente contrafeito, deu uma desculpa, se levantou da mesa do restaurante e foi embora, repentinamente apressado.
             - O que eu fiz? Por que ele foi embora?
             A resposta, só encontrei uma semana depois, contando o fato para uma amiga, psicóloga.
          - Se você tivesse falado de sua outra profissão, professora, ele teria ficado. Ele viu que você é desenhista projetista e ele não é nada disso.
             Eu não queria ser desenhista projetista, eu não queria ser uma pintora famosa, eu não queria ser escritora, eu não queria ser uma grande psicóloga. Eu só queria ser amada.
            Em uma festa de aniversário familiar, as surpresas foram se sucedendo, uma seguindo a outra: o marido da sobrinha foi chamado ao microfone. Levantou-se, tranqüilamente, pegou o microfone e cantou um samba sem nenhum constrangimento, nem desafinar em nenhuma nota. Deixou o microfone lá e foi saindo na maior cara de pau, como se estivesse acostumado com o palco. Minha surpresa foi ainda maior quando a cunhada do meu irmão mais novo, sempre tão certinha pega o microfone, as folhas da música caem no chão e ela continua rindo, pega as músicas e na maior tranqüilidade, a calma de quem sabe o que faz, canta Edelwaiss em voz de soprano, notas agudas e altas, sem se preocupar com o público à sua volta.
            - Mas, ela canta? Ela sabe cantar árias? Ela tem essa voz linda? Como é que eu nunca soube disso?
            Há alguns anos atrás um cliente me procurou. Um homem bonito, interessante, mas a pele estava acinzentada, olheiras fundas e visíveis. Esperei a notícia de alguma doença, alguma tragédia. Contou-me que sua namorada esperava um filho seu. Estava dopado com remédios psiquiátricos.
            Por que a perspectiva de trazer uma nova vida ao mundo era tão arrasadora para aquele rapaz em seus quarenta anos de vida? Que imagem ele tinha de si mesmo ou que imagem sobre si mesmo lhe fora imposta ao longo dos anos?
            Tempos depois esse mesmo homem me pediu outra consulta e disse que pagaria o preço que eu estipulasse.
           Entrando no consultório, espantei-me com a mudança. Terno impecável e ao mesmo tempo funcional, um pano flexível, cinza claro, as medidas certas. A pele em tonalidade saudável. Todo ele transpirava vida e alegria. Contou-me que seu irmão mais velho acabara de falecer. Que ele agora era o dono do negócio. Foi fazendo a sua narrativa e no meio a revelação de que após o enterro do irmão tinha saído com os amigos para uma cerveja. A palavra que o descreveria, na ocasião era: libertação. Não falei nada nem tinha ninguém a quem comentar o ocorrido. Dias depois a namorada dele me procura e menciona o fato.
            - Coisa estranha! – disse – Ele parece que ficou alegre com a morte do irmão.
            O lobo do homem...O que queremos, realmente? Ser temidos, respeitados, solapar os talentos de nossos irmãos, nossos seres mais chegados, por sentimentos mesquinhos de inveja disfarçados em “eu sei mais do que você, eu sei o que é melhor para sua vida, as regras devem ser estas e aquelas” ou simplesmente deixar rolar e sermos simplesmente amados? Não estou me referindo à permissividade que deixa um adolescente ou criança criar as regras da casa levando a uma possível marginalidade futura, mas falo de talentos, de inteligência, de beleza que deviam ser estimulados e não abafados. Para se dirigir um carro é preciso tirar carteira de motorista, certo? É preciso conhecer as regras de trânsito para a própria segurança e dos demais. Em uma família os pais devem ditar as regras e não as crianças, simplesmente por uma questão de competência e experiência. Falo do cônjuge que descobre talentos e habilidades depois da morte do companheiro, que o podou amorosamente anos a fio. Falo de mulheres submissas e apavoradas que não dizem uma só palavra em uma sala cheia de pessoas amigas, mas que pegam um microfone e falam em público, com desembaraço, depois da morte do marido. 
          Talentos que parecem nascer repentinamente quando o parente mais chegado se vai, levando consigo a repressão e todos os medos associados.