sábado, 24 de novembro de 2012

Condomínio: A técnica do não foi

A técnica do não foi
ou o adolescente de cinqüenta anos.

            O eletricista havia chegado para fazer a instalação das lâmpadas de Natal no jardim. Fiquei ao seu lado, ajudando, mostrando onde as lâmpadas deviam ser colocadas e onde estava o relógio responsável pela iluminação do jardim. Fomos à primeira portaria, abri a porta do painel, acendi a luz e voltamos ao jardim.
            Depois de instalar algumas lâmpadas, ele fez o teste e nada aconteceu: continuaram apagadas.
            - Não entendo o que houve: as lâmpadas não acendem, ele disse.
            Voltei à portaria e vi que alguém havia desligado o relógio. Voltei a ligar a luz e retornei ao jardim.
            Ele continuou o trabalho, colocando o restante das lâmpadas nas árvores e plantas. Depois de tudo pronto, nova tentativa e ... as lâmpadas continuaram apagadas.
            - Mas, não é possível! ele disse.
            Pela terceira vez voltei à portaria, abri a porta do painel onde ficam os relógios de todos os apartamentos e mais uma vez constatei que a luz da portaria havia sido apagada.
            - Quem fez isso?
            Usei o método do não foi. É um método infalível. Como funciona? Ele funciona através da exclusão: são três apartamentos naquela portaria. Vamos começar pelo terceiro andar: Não foi o casal que mora no terceiro andar, porque são adultos, trabalham e não tem tempo para brincadeiras. Vamos ao segundo andar: Não foi ninguém de lá porque os moradores são idosos e só descem as escadas quando necessário. E o primeiro andar? Sobrou o primeiro andar.
            Subi os cinco degraus da escada, apertei a campainha.
            D. Olga atendeu.
            - Fala com o Jô para não apagar as luzes da portaria porque estamos trabalhando com as lâmpadas de Natal no jardim. – falei.
            - Aqui ninguém apagou as luzes. – ela respondeu, indignada. Ela estava trabalhando na cozinha, perto da porta dos fundos e Jo estava saindo e entrando pela porta da frente.
            - Sei - respondi e voltei ao jardim, depois de acender, mais uma vez, a luz.
            Jô é um adolescente de cinqüenta anos de idade, perito em atormentar as pessoas, humilhar os empregados e criar problemas com o condomínio. A razão disso é que tem tempo sobrando: desconhece o significado da palavra trabalho e vive às custas da mãe, viúva.
            O problema se resolveu. As luzes de Natal, finalmente se acenderam.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Descobri que falo grego

                                                    Descobri que falo grego

 

         Há cerca de seis anos atrás encontrei alguns meninos de rua brincando com uma calopsita, puxando a coitada pela perninha enquanto ela tentava fugir. Um casal viu aquilo e a mulher comentou:

        - Esse pássaro é caro. Olha o que os meninos estão fazendo com ele.

        Sem pensar em nada, com quem eu estaria lidando, só vi o bichinho sendo maltratado. Estendi a mão e peguei a calopsita, que, em lugar de agradecer enfiou o bico na minha mão. Foi bem doloroso. A mulher me entregou uma folha e disse para eu colocar no bico dela. O dedo sangrou.

        Enquanto eu me encaminhava para casa, um dos meninos me seguiu.

        - Ele é meu, fui eu que achei! - disse

        Expliquei que ia cuidar do pássaro, dar comida e água e ele se conformou. Depois pensei que tinha sido precipitada, eu devia ter negociado, dado algum dinheiro aos meninos...

        Coloquei a calopsita em uma gaiola e meus gatos passaram o dia olhando para ela, fascinados. Não fizeram mais nada o dia inteiro. Liguei para o faz-tudo, meu eletricista-bombeiro-encanador- azulejista, etc, que quebra todos os galhos domésticos para ele fazer uma adaptação, colocar uma cordinha com roldana para facilitar a subida e descida da gaiola. Comentei que minha gata Safira podia até pegar o pássaro dentro da gaiola. Sai por um momento e vi o José tentando se esconder no banheiro.

       - José, por que você está se escondendo no banheiro de empregada? - perguntei.

       - É porque você disse que a gata é brava - ele respondeu.

       - Mania que as pessoas tem de pensar que gato é igual tigre, que pula no pescoço das pessoas. Gato cuida da própria vida. E eu não disse que ela é brava - falei.

       - Disse.

       - Não disse.

       - Disse.

       - Está bem, mesmo que ela seja brava não está interessada em você. Está interessada no passarinho. - falei.

       Ele saiu do banheiro e entrou no quarto de empregada, onde meus gatos estavam. Minha gata Safira, que é mansa, lerda, de bem com a vida, de repente, ao vê-lo se aproximando, se arrepiou toda: das costas ao rabo, que ficou lindo, enorme.

       É o poder do medo e da crença humana, capaz de influenciar até o comportamento animal.

      

      

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O lobo do homem


O LOBO DO HOMEM

            Esta semana três pessoas diferentes, em dias diferentes, me disseram que estou muito bonita. A terceira me perguntou se fiz plástica. Não, não fiz nem tenho dinheiro para gastar com isso. Depois dos sessenta anos de idade descobri que sou e fui bonita. Descobri, também, outros talentos que mantive escondidos: pintura, facilidade em escrever, habilidade em minha profissão atual, porque já passei por várias. Pela primeira vez descobri que fui colocada neste mundo com uma enorme bagagem de talentos, como aquela historinha do bebê e das fadas que o visitam no dia do batizado trazendo um talento, cada uma. Depois vem a fada má que não foi convidada e estraga tudo. Como as pessoas, antigamente, eram sábias e entendiam de psicologia!
            A fada má não é apenas uma, são dezenas, centenas de fadas e bruxas que encontramos ao longo da vida e vão apagando cada fagulha de nossa luz, que tenta brilhar, arrancando cada pena nova do passarinho filhote que pensa em voar.
            - Você fica ai estudando desse jeito, colecionando diplomas, não vai arranjar marido. Ninguém vai querer casar com você.- diz a melhor amiga.
            Não sei para que as pessoas estudam, eu estudei porque me interesso pelos assuntos, porque gosto, porque a vida se torna mais interessante, porque as curiosidades são satisfeitas, porque é satisfatório e divertido, mas nunca faltou quem me empurrasse para baixo, solapando qualquer ilusão que eu tivesse a respeito de minhas qualidades, principalmente as pessoas significativas para mim a quem eu tentava, desesperadamente, agradar.
         Muitos anos atrás, estava de férias no Rio de Janeiro, um rapaz se aproximou da mesa, todo interessado e se sentou ao meu lado.
            - O que você faz? – perguntou.
         - Desenho projetivo – expliquei. Calculo as ferragens que devem ser colocadas em um edifício, o material a ser empregado, no projeto de engenharia, respondo, inocentemente.
          O rapaz olhou para os lados, visivelmente contrafeito, deu uma desculpa, se levantou da mesa do restaurante e foi embora, repentinamente apressado.
             - O que eu fiz? Por que ele foi embora?
             A resposta, só encontrei uma semana depois, contando o fato para uma amiga, psicóloga.
          - Se você tivesse falado de sua outra profissão, professora, ele teria ficado. Ele viu que você é desenhista projetista e ele não é nada disso.
             Eu não queria ser desenhista projetista, eu não queria ser uma pintora famosa, eu não queria ser escritora, eu não queria ser uma grande psicóloga. Eu só queria ser amada.
            Em uma festa de aniversário familiar, as surpresas foram se sucedendo, uma seguindo a outra: o marido da sobrinha foi chamado ao microfone. Levantou-se, tranqüilamente, pegou o microfone e cantou um samba sem nenhum constrangimento, nem desafinar em nenhuma nota. Deixou o microfone lá e foi saindo na maior cara de pau, como se estivesse acostumado com o palco. Minha surpresa foi ainda maior quando a cunhada do meu irmão mais novo, sempre tão certinha pega o microfone, as folhas da música caem no chão e ela continua rindo, pega as músicas e na maior tranqüilidade, a calma de quem sabe o que faz, canta Edelwaiss em voz de soprano, notas agudas e altas, sem se preocupar com o público à sua volta.
            - Mas, ela canta? Ela sabe cantar árias? Ela tem essa voz linda? Como é que eu nunca soube disso?
            Há alguns anos atrás um cliente me procurou. Um homem bonito, interessante, mas a pele estava acinzentada, olheiras fundas e visíveis. Esperei a notícia de alguma doença, alguma tragédia. Contou-me que sua namorada esperava um filho seu. Estava dopado com remédios psiquiátricos.
            Por que a perspectiva de trazer uma nova vida ao mundo era tão arrasadora para aquele rapaz em seus quarenta anos de vida? Que imagem ele tinha de si mesmo ou que imagem sobre si mesmo lhe fora imposta ao longo dos anos?
            Tempos depois esse mesmo homem me pediu outra consulta e disse que pagaria o preço que eu estipulasse.
           Entrando no consultório, espantei-me com a mudança. Terno impecável e ao mesmo tempo funcional, um pano flexível, cinza claro, as medidas certas. A pele em tonalidade saudável. Todo ele transpirava vida e alegria. Contou-me que seu irmão mais velho acabara de falecer. Que ele agora era o dono do negócio. Foi fazendo a sua narrativa e no meio a revelação de que após o enterro do irmão tinha saído com os amigos para uma cerveja. A palavra que o descreveria, na ocasião era: libertação. Não falei nada nem tinha ninguém a quem comentar o ocorrido. Dias depois a namorada dele me procura e menciona o fato.
            - Coisa estranha! – disse – Ele parece que ficou alegre com a morte do irmão.
            O lobo do homem...O que queremos, realmente? Ser temidos, respeitados, solapar os talentos de nossos irmãos, nossos seres mais chegados, por sentimentos mesquinhos de inveja disfarçados em “eu sei mais do que você, eu sei o que é melhor para sua vida, as regras devem ser estas e aquelas” ou simplesmente deixar rolar e sermos simplesmente amados? Não estou me referindo à permissividade que deixa um adolescente ou criança criar as regras da casa levando a uma possível marginalidade futura, mas falo de talentos, de inteligência, de beleza que deviam ser estimulados e não abafados. Para se dirigir um carro é preciso tirar carteira de motorista, certo? É preciso conhecer as regras de trânsito para a própria segurança e dos demais. Em uma família os pais devem ditar as regras e não as crianças, simplesmente por uma questão de competência e experiência. Falo do cônjuge que descobre talentos e habilidades depois da morte do companheiro, que o podou amorosamente anos a fio. Falo de mulheres submissas e apavoradas que não dizem uma só palavra em uma sala cheia de pessoas amigas, mas que pegam um microfone e falam em público, com desembaraço, depois da morte do marido. 
          Talentos que parecem nascer repentinamente quando o parente mais chegado se vai, levando consigo a repressão e todos os medos associados.
           
           
           
           

            

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Um país de endividados...para quê?

Um país de endividados: para quê?

            Há cerca de vinte ou trinta anos atrás, quando diziam haver inflação, havia um apelo constante, nos anúncios, para que todos tivessem uma poupança. Davam exemplo de pessoas de baixa renda economizando pequenas quantias para colher o fruto tempos depois. Outro apelo era o “Mexa-se”, aconselhando exercícios físicos, que, no mínimo, incomodava os mais preguiçosos.
            Depois disso vieram uns planos econômicos que disseram: ia estabilizar a economia; um mesmo plano recebeu uma denominação diferente e foi implantado com aparente sucesso: algumas coisas ficaram mais ou menos sem aumento, mas o grosso mesmo, como o preço de automóveis, imóveis, eletrodomésticos, transporte e outros, aumentaram de forma astronômica, mas a cantilena geral era de que a inflação estava sob controle. É verdade que o preço dos alimentos sobe a cada dia, o salário continua reduzido, quem recebia dez salários mínimos no início do plano real agora recebe três, mas a inflação esteve ausente – esta é engraçada, conta outra – e só agora ameaça voltar.
            A poupança sofreu um abalo, no início do plano e foi descartada ou desvalorizada. Agora, em vez de poupança, a maioria dos brasileiros tem cartão de crédito e uma enorme dívida para pagar. Se não há inflação como é que se explica o endividamento do brasileiro? 
            Na época da juventude, não havia roupas de marca – não pagávamos a propaganda de ninguém. Havia tecidos bons, resistentes, de boa qualidade e bonitos, como brocados, rendas, linhos, tafetás, sedas, que não encontramos mais nas lojas. Quando a inflação estava alta, eu recorria às lojas populares para comprar roupas bonitas e baratas. Com o novo plano, descobri que continuo fazendo a mesma coisa, embora as roupas já não tenham a mesma qualidade.
            Esta semana recebi um folheto de um banco com uma proposta, no mínimo, indecente: -Você já tem o mais difícil que é o imóvel... seguido de uma proposta de empréstimo sobre parte do valor do imóvel que possuo. Nem terminei de ler, rasguei o papel que pode levar alguns ingênuos a acharem que estão fazendo um grande negócio, pedindo um empréstimo que provavelmente não conseguirão pagar, colocando em risco a única estabilidade de sua vida: o lugar para morar.
           Faço parte dos 10% - ou menos- de brasileiros que estão com as contas em dia, não uso cartão de crédito, só o do banco, para compras à vista e apesar disso, minha casa está em ordem, pintada, tudo em bom estado, funcionando, embora meu salário seja pouco. Por quê? Como? Porque faço o contrário da maioria das pessoas: primeiro economizo para depois comprar. Outro segredo: JAMAIS gastar todo o ordenado, sempre deixar pelo menos 20% de reserva para qualquer necessidade ou urgência. Isso, porque não conseguiria dormir se estivesse com alguma dívida pendente e posso afirmar, com orgulho, que tenho dormido muito bem ao longo de minha vida.
          A pergunta que faço, constantemente, é: qual a razão da insistência, através de telefonemas e propagandas, do incentivo ao endividamento através de cartões de crédito? O que se esconde por trás disso? Eu, hem! Sou macaca velha e não ponho a mão em cumbuca.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Querendo fazer bonito

Querendo fazer bonito

 

            Senti o rosto ardendo de vergonha. Não tinha onde enfiar a cara. Entrei em casa e não escapei do olhar de meu irmão mais novo.

            Entrei no quarto, fechei a porta e me sentei na cama. Logo o carro de Gilberto, o irmão da namorada de meu irmão, o fusca azul, que ele adorava. Acho que ele gostava mais do carro do que de qualquer pessoa ou coisa viva. A vergonha estava no meu rosto, no meu corpo, que andou encolhido da sala ao quarto.

            Meu irmão bateu na porta e entrou, em seguida:

            - O que aconteceu? Bateu o carro?

            Era impossível esconder alguma coisa dele. Eu havia ajudado minha mãe a criá-lo. Fiz mamadeiras, troquei fraldas, dei banho, vesti como se fosse um boneco, escolhendo as roupas mais bonitas, as que combinavam, embalei-o para dormir, ri de suas brincadeiras, chamei a atenção quando fazia alguma coisa errada. Agora, depois de adulto, ao lado da namorada, na sala, havia-se tornado telepático e aprendeu a ler meus pensamentos, meu rosto, o sentimento de vergonha e decepção que carreguei como uma bandeira da sala ao quarto.

            - Joguei em cima de uma árvore – falei.

            - Puxa! O carro do Gilberto? Nossa!

            Mas também... quem mandou? Ele me azucrinou o tempo todo, foi criticando tudo, foi me depenando ao longo do caminho, que nunca pareceu tão longo como naquela tarde. O pior de tudo foi a minha intenção: era jovem e solteira e queria fazer bonito, mostrar a ele como eu sabia dirigir, fazer alguma coisa bem feita, ser admirada por ele, respeitada. Bem que ele não queria que eu tocasse no seu precioso carro. Fui me sentindo humilhada ao longo do caminho até que, de repente surgiu aquela árvore e quando vi, o carro estava debaixo dela.

            - Estragou muito?

            - Um pára-lama amassado, respondi.

            Foi parecido com aquela vez em que fui passar um fim de semana em Esmeraldas. Cheguei à noite, na casa de uma amiga, fui dormir e de madrugada ouvi sons de bois entrando debaixo da janela. De manhã vi que a casa tinha uma enorme extensão, no fundo, transformando-se em uma fazenda. Na frente, era cidade, no fundo uma fazenda. Dias depois um dos rapazes estava me contando, com orgulho, como sangrava um boi e o retalhava todo, usando apenas uma faca. Fiquei horrorizada e não disse nada. No dia seguinte ele estava de cama, com febre. Acho que joguei energia negativa nele. Ele também quis fazer bonito para mim e o resultado foi desastroso.

            Procurei o catálogo telefônico e liguei para algumas oficinas mecânicas, explicando o estrago e pedindo um orçamento. No dia seguinte fui ao banco, peguei a quantia equivalente ao conserto de um pára-lama, coloquei em um envelope e pedi ao meu irmão para entregar ao Gilberto.

           Foi a maneira que encontrei de me sentir melhor.

De boas intenções o inferno anda cheio.

De boas intenções o inferno anda cheio

            A menina, agora mulher, lia pela enésima vez o livro de Charles Dickens que contava a história do velho avarento Scrooge, que acabava de receber a visita do fantasma dos Natais passados. O velho Scrooge estava alegre, feliz por reencontrar seus amigos de infância: Huckleberry Finn, Tom Sawyer, Robin Hood e outros. A moça sentiu lágrimas descendo pelo seu rosto. Eram seus amigos, também, que trouxeram alegria e aquela sensação agradável de calor no peito. Havia outros: que o velho Scrooge não conheceu, os mais femininos: Branca de Neve, a Sereiazinha, A Menina dos Fósforos, O Príncipe Feliz e dezenas e centenas de outros amigos, de várias nacionalidades.
            Sempre muito tímida, muito cedo descobriu que falava outra língua diferente; as pessoas não a entendiam. Tentava esforçar-se, dar o melhor de si, fazer parte da turma, pertencer, mas o resultado era sempre o mesmo. Foi largando tudo, aos poucos, no decorrer da vida. Foi desistindo. Concluiu que as coisas eram assim mesmo e se refugiou nos livros, nos filmes. Muitas vezes escrevia, em momentos de grande emoção e raiva, colocava tudo no papel. Chegou a enviar cartas para ex-namorados, que jamais responderam nem deram sinal de terem lido ou simplesmente recebido.  Mas era uma forma de ter alívio e satisfação de colocar seu pensamento no papel, de sair do casulo, de colocar aí seu ponto de vista, de mostrar o coração.
            Nas festas familiares continuava à margem, falando pouco, participando pouco. Na infância o contato social era sofrido, difícil, mas à medida em que ia crescendo, foi-se tornando mais fácil. Às vezes chegava a ser agradável, principalmente quando o evento era musical. Tinha a impressão de desligar-se da terra e flutuar, de criar asas e ensaiar alguns vôos baixos.
            Em momentos de angústia descobriu uma religião japonesa que trazia sempre mensagens alegres e positivas. Pegava as revistas, lia e relia e notou que se sentia melhor, mais alegre e feliz depois de cada leitura. Havia esperança em cada página. A linguagem era simples, acessível. Era Natal, comprou algumas folhinhas. Em cada página diária, uma mensagem positiva. Embrulhou para presente e entregou à sua irmã.
            - Esta é para Lourdes. Você se encontra com ela com mais freqüência, peço que entregue.
            Dias depois, a festa familiar de Natal. Convidados, almoço, confraternização. Aproximou-se da irmã, anfitriã do evento, para uma conversa informal.
            - Você não devia ter dado aquela folhinha para Lourdes, sua irmã falou.
            A menina, agora mulher, sentiu uma fincada no peito, como se um espeto estivesse entrando ali.
            - Mas... como? Só conseguiu falar.
            - Ela ficou horrorizada. Ela é católica e disse que aquilo é coisa de espiritismo.
            Continuou sentada no mesmo lugar, tentando manter a aparência normal, tentando manter a expressão do rosto impassível. Mas o espanto era enorme. Era verdade que a religião japonesa acreditava em reencarnação, nessas coisas de espiritismo, mas essas partes a gente pulava, deixava para lá. Afinal, quem é que tem certeza do que se passa após a morte? A gente ia saltando esses pedaços ou não dava importância a eles e se concentrava nas outras mensagens: no respeito aos pais, às pessoas, no cultivo do amor e do espírito de gratidão para solução de problemas diários.
            O vizinho chegou, meses depois, para uma rápida visita ao seu pai. Enquanto conversavam na sala comentou que a esposa estava no hospital. Mais uma vez a menina-mulher quis ajudar, veio com sua solidariedade.
            - Esta revista é muito boa, disse, leve para ela. Acho que vai gostar.
            Ela havia comprado vários exemplares das revistas da religião japonesa e costumava fazer doações. Queria que as pessoas sentissem aquela sensação de bem estar que ela experimentava a cada leitura, queria levar alívio ao sofrimento alheio.
            Ele olhou aquilo como se fosse algum objeto contaminado por uma doença extremamente contagiosa. Nem tocou. Fez um gesto com as mãos, para afastar a revista.
            - Cada pessoa pensa de um jeito. Cada um tem a sua religião, ninguém pode mudar a maneira do outro pensar.
            Como se ela estivesse tentando converte-lo a outra religião. Mais uma vez teve de se esforçar para manter a boca fechada, não ficar com o queixo caído de espanto. Os espantos se sucediam assim, progressivamente, um após outro.
            Acho que não sei mesmo lidar com as pessoas, pensou.
            Se ele tivesse recebido a revista e jogado na primeira lata de lixo teria feito mais bonito.
           





Cuidar & paparicar

Cuidar & paparicar

 (ano: 2010)
          Tive outro ataque de verborréia, no início desta semana. Estava tomando banho quando ouvi vozes na sala. Vesti-me e fui ver quem era. Diva estava sentada, combinando alguma coisa com Marilia. Comprar não sei o que para ela.
          - Por que você precisa da Diva para fazer suas compras? – perguntei – O Zé da Silva não está deixando você sair de casa?
                Para quem não sabe, Zé da Silva é o nome que dei ao “espírito” ou ser invisível que dita as ordens da vida dela. É a criatura que sempre diz que “hoje é o dia da morte” dela. Hoje é qualquer dia fora do quotidiano: Natal, carnaval, eleição, festa junina, viagem de outra pessoa, pipocas e vai por aí afora.  Ele é bastante trágico e ela obedece a cada mando dele, e jamais se convence da inveracidade de suas ameaças, apesar de constatar, anos a fio que nada aconteceu do que estava esperando.
          Falei tudo o que estava pensando. Que achava errado ela e Geraldo ficarem fazendo tudo o que Marilia queria. Que há dois meses Marilia não sai de casa para nada, nem para comprar pão, que eu fico esperando que ela compre, e ela acaba comendo biscoitos ou o que estiver em casa e no fim eu tenho de sair e comprar o pão – aqui na esquina, porque ela absolutamente não vai. Que ela não tem nenhum defeito nos braços e pernas e pode fazer suas compras sozinha. Que está com dificuldade para andar porque está sentada há dois meses, etc. e meu ataque de verborréia foi até o fim. Diva conservou a pose, falou com Marilia que eu falo para o bem dela, ma s que não queria provocar atrito e saiu.
          Geraldo, como sempre, ficou em silêncio e foi para o quarto. Depois de algum tempo, com muito cuidado (acho que eu sou perigosa) disse que eu estou muito cansada, esgotada e que ele vai voltar para Matipó o mais depressa possível, que vamos morar lá, mas posso vir aqui uma vez por mês, cuidar dos problemas.
          As pessoas não sabem a diferença entre cuidar e paparicar. Quando coloquei uma empregada doméstica aqui para tomar conta de Marilia, anos atrás, enquanto eu saía para trabalhar, ela me perguntou se era para fazer laranjada para Marilia... Mas...não é isso. (para quê? Se ela quiser laranjada pode fazer sozinha). Quando cheguei do trabalho encontrei Marilia sozinha em casa. Tive uma conversa com a empregada e falei que ela não havia entendido o seu trabalho: que ia voltar a fazer apenas a faxina e estava dispensada do trabalho com Marilia. Ela ainda achou ruim ter perdido o ganho extra.    
           Paparicar é fácil, mas contribui para o estacionamento, o estagnamento do paciente. Cuidar faz o paciente evoluir. Paparicar significa seguir a cabeça do paciente. Cuidar significa seguir a cabeça do cuidador.  Paparicar é por o penico (de preferência cheio de substancias malcheirosas) em cima da mesa de jantar porque o paciente quis assim. Cuidar é explicar ao paciente que o penico deve ficar no banheiro. Paparicar é deixar o paciente sem banho uma semana porque ele não quis se lavar. Cuidar é convencer ao paciente que os banhos são necessários por esta e aquela razão. Paparicar é deixar o adolescente dirigir na contramão sem carteira. Cuidar é ter autoridade para dizer não. Paparicar torna o cuidador escravo. Cuidar torna-o dono da situação e o seu trabalho mais leve.
               

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Covil e casa de campo

Covil e casa de campo

 

            Alugamos, no ano passado, o porão para um casal jovem, Diogo e Lúcia, com dois filhos pequenos. Eles tinham acabado de sair de um dos cômodos de Seu Ronin, ao lado. Tivemos pena das crianças e alugamos por um preço simbólico. Eu queria alguém para tomar conta da casa e plantar verduras no quintal. Ele pagou o primeiro mês de aluguel e só pagou mais algum quando retornávamos a Matipó, sempre dando explicações pelo atraso. Meses depois, descobrimos, através de um telefonema, que havia sumido objetos da casa e Geraldo mandou que os dois saíssem do porão, porque a casa ficou sozinha, dezenas de anos e jamais havia sumido coisa alguma. Quando retornamos, meses depois, para nosso espanto os dois ainda continuavam no porão e descobrimos que nosso gás havia acabado (havíamos comprado antes de voltarmos a BH) e quando Geraldo foi comprar o gás, viu que o botijão de reserva havia sumido. Mais um vez chamou o Diogo, que novamente estava ausente e teve uma discussão com Lúcia, mandando que saíssem do porão.

            Só conseguimos que saíssem em fevereiro e Geraldo e Diogo tiveram uma briga na hora em que o caminhão estava saindo. Diogo retornou em seguida e fez sérias ameaças a Geraldo. Como estou tarimbada em controle e manipulações, já estudei bem essa matéria, nos livros e na Escola da Vida, interrompi o que ele dizia:

           - Pára com isso, Diogo, isso não funciona com a gente. Só funciona com bobos – falei.

          Ele parou com as ameaças e ficou confuso. Entrei no porão depois que estava vazio e a sensação foi horrível: covil – foi a palavra que me veio à mente. A energia estava densa e pesada, havia sangue no chão da sala e do quarto, traças cobriam o teto e as paredes, o quintal cheio de lixo, fraldas sujas, pedras, mato alto. Além disso, o pouco que havia estava quebrado: interruptores, e até o “miolo” do tanque havia sido retirado à faca.

          Geraldo passou o dia consertando tudo, lavou as paredes e chão com mangueira e detergente e alugou o porão para seu primo, que, por acaso passou por ali contando suas dificuldades com o lugar onde morava. Dias depois a luz foi cortada e quando fomos pagar a conta ( Diogo sumiu com as contas) vimos que havia uma despesa de R$ 400,00! Pagamos e escrevi uma longa carta à Energisa, que havia religado a luz três vezes sem pagamento, apenas porque Diogo usou o nome de Geraldo para religar a luz. Escrevi que fomos vítimas de uma falcatrua e a Energisa colaborou com isso. Agora os funcionários mantêm uma distancia segura quando vêm aqui. Não sei se algum foi despedido depois da minha denúncia, mas se foi, mereceu.

            A avó de Diogo disse que os dois estavam satisfeitos com a outra casa porque havia espaço para as crianças. Agora, que retornamos, para minha surpresa vi Lucia e as crianças novamente no cômodo do Seu Ronin. Falei com Geraldo que se os dois se separaram ela tirou a sorte grande. Dias depois ela colocou a mudança em um caminhão e tornou a se mudar. Soube, depois que a senhoria havia visitado a avó de Diogo mandando ele retirar a mobília que ela ia colocar na rua porque ele não pagou a conta de luz e água. Parece que ele é firme em seus princípios: é contra os valores morais dele pagar as contas...Outros detalhes soube depois: que Diogo batia em Lúcia ( se eu soubesse disso teria chamado a polícia, sem me identificar) o porão era usado por marginais perigosos, que Diogo deixou a mulher de um policial entrar em nossa casa com o namorado, notei que colchas, lençóis e toalhas de banho e talheres sumiram e soube que Lucia havia colocado colchas diferentes e bonitas no varal. Nesse intervalo eu havia ligado dezenas de vezes para a vizinha, para saber se os dois haviam se mudado, se a casa estava em ordem e não consegui nenhuma ligação  porque ela havia trocado o número do celular...

            O primo dele é pequeno, magro, parece ter uns setenta anos e é muito respeitado na cidade. Fico observando. As mães mandam seus filhos tomarem a benção ao seu Geraldo ( é o nome dele, todo mundo em Matipó se chama Geraldo), todos param para conversar com ele. Levou terra em baldes, colocou no quintal, comprou sementes, semeou na sombra e depois plantou. Regou as flores que eu havia plantado e tudo mudou de aspecto. Em um mês já pudemos comer as bertalhas, couves e mostardas. Levei para ele cenouras com brotos e sementes de abóbora vermelha. É uma alegria ver as plantas crescendo. Nossa pia usada, de aço inoxidável, que paguei a um táxi para levar para Matipó foi colocada, por Geraldo na cozinha do porão e ficou ótima.

            Temos um novo inquilino invasor: é uma garrinchinha, muito simpática e mimosa, que faz seu ninho no telhado da casa.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A vida de cada um

A vida de cada um

                A campainha tocou. Era Iara, antiga empregada da casa, participando da vida familiar há mais de vinte anos. Agora ela era a visita. Sentou-se no sofá,  Mirna ofereceu um cafezinho. No meio da conversa, falou:
          - Você precisa pensar bem no que está fazendo, ela disse. Você tem uma vida muito boa.
          Na semana anterior Iara havia chegado cedo demais. Tocou a campainha, Mirna abriu a porta e ela caminhou até a cozinha e encontrou lá, sentado à mesa, tomando café, um homem da mesma faixa etária da patroa: alto, cabelos grisalhos, boa aparência.
          Quando ouviu a campainha ele perguntou o que devia fazer. Mirna pensou naqueles filmes onde o amante é escondido às pressas dentro do guarda-roupa ou sai pela porta dos fundos, mas naquele apartamento a porta dos fundos ficava perto da porta de entrada e o guarda-roupa não tinha tamanho suficiente para esconder um homem daquela altura e além de tudo a patroa e dona da casa era ela.
            Sorriu e disse:
          - Pode ficar aí mesmo.
          A faxineira era evangélica e havia se acostumado a ouvir confidências de várias pessoas. De Mirna ela não sabia nada, apesar do longo tempo de freqüência à  casa, de ter acompanhado os pais dela, ao longo de suas vidas. Quando fazia alguma pergunta, Mirna desviava o assunto. E agora estava ali um homem, na cozinha às 6h da manhã, tomando café com bolo.
          Ela considerava a vida de Mirna boa porque não faltava nada em casa, havia comida na mesa, a mobília era bem conservada, as contas estavam em dia. Mirna não teve nenhuma reação, mas ficou espantada com a troca de hierarquia e o desplante da situação.
          - Iara, falou, minha vida é horrível.
          Não falou das qualidades dele, nem da solidão anterior, das decepções, humilhações e agressões sofridas ao longo da vida na luta para encontrar um companheiro. Não falou dos momentos em que ia ao médico, sozinha, da falta de companhia nos momentos mais difíceis da vida, das idas, sozinha, ao cinema, da falta de reconhecimento ao seu talento nos vários ambientes de trabalho e estudo que freqüentou, das vezes em que foi dispensada pela secretária e impedida de chegar à sala do chefe para mostrar a pasta com os trabalhos. Iara continuava se apegando ao pão em cima da mesa.
          Não falou dos braços dele ao redor do seu corpo, de nenhuma cobrança ao seu aspecto físico, de nenhuma importância às mudanças causadas pelo tempo, da aceitação mútua dos  defeitos e qualidades. Não falou do apoio que recebiam um do outro, dos carinhos, das brincadeiras e do riso que havia tirado do fundo da mala, há tanto tempo escondido. Não falou nada, como não falou, anteriormente de seus pecados e fraquezas.
          Continuou ouvindo o que ela tinha a dizer. As palavras escorregaram e caíram no chão, entraram pelas frestas do assoalho e desapareceram. Só ficou a primeira frase: que a sua vida era muito boa...
          Só existe uma pessoa que pode dizer se sua vida é boa ou ruim: o dono da vida. Os de fora enxergam meio palmo do que se passa dentro do outro. Não sabemos nem mesmo distinguir o amigo do inimigo, quem nos ama e quem nos detesta debaixo de sorrisos amáveis.
          Porque somos incapazes de ler pensamentos e o ser humano é cheio de mistérios.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Pela primeira vez

Pela primeira vez...

 

          Depois de três meses de preocupação e correria de um lado para o outro, de muito trabalho, cansaço e lágrimas, olho com medo o momento presente.

          Marilia está lúcida.

          Não mais ou menos lúcida, fazendo uma ou outra bizarrice, levando minha paciência à exaustão. Não. Está lúcida, completamente.

          Olho essa pessoa sem reconhecê-la. Onde os diabos se esconderam? Eles saíram? Foram para outro astral? partiram definitivamente? Estamos livres, finalmente?

          Ela olha a tv, não aereamente, como antes, dividida entre dois mundos, um muito feio e assustador, outro, nem tanto. Mas acompanha a programação, ri, dá opinião, seu parecer, agora lógico.

          Não mexe na geladeira, com medo de voltar ao sofrimento anterior. Não lava mais as louças e panelas, mas deixo-a livre, com medo de que alguma coisa se quebre e o passado retorne. Espontaneamente voltou a fazer o crochê. Disse que é um ponto simples, mas olho de perto e vejo que são flores no meio de uma trama bonita, os pontos certos.

          A organização é um sintoma de lucidez.

          Quando ela estava mal, chupava laranjas no hospital e jogava os bagaços no chão. Outra interna, viciada em crack, abaixou-se e catou aquilo com as mãos e jogou no lixo, sem ninguém pedir. De outras vezes eu pegava aquilo com um saco plástico e jogava no lixo. Notei que à medida em que ia melhorando, passou a colocar os bagaços dentro do saco plástico que eu levava. Agora observo que ela toma banho todas as manhãs, arruma a cama, coloca os chinelos em uma posição organizada, mantém o quarto arrumado. Comparo esse comportamento com aquele programa da tv, Os Acumuladores, em que determinadas pessoas vão juntando roupas, objetos e comida dentro de casa, comprando objetos sem abrir os embrulhos, a tal ponto que é preciso escalar os objetos ou montanhas de roupas para entrar em casa. Sem contar os animais que se acumulam e proliferam debaixo daquela sujeira. E da angústia que sentem quando precisam se desfazer de um papel de embrulho... a desorganização externa é um sinal de desorganização mental. E vice-versa.

          Ela agora, pela primeira vez na vida, almoça junto conosco, participa de nossas refeições sem nenhum preconceito ou idéias fora da realidade. Aprendeu a gostar de pão com queijo quente, que coloco no forno, de manhã com o pão da véspera. Pede o almoço e o jantar, se atrasamos um pouco. Coloca as tampas nas panelas, coisa que nunca causou preocupação, antes.

          Todos os dias me chama para dar uma volta na calçada do prédio. Andamos de braços dados, conversando como duas pessoas normais, falando do quotidiano. Nos primeiros dias deu uma volta e pediu para entrar, por estar cansada. Agora dá duas voltas e pede uma terceira.

          Conversa com Geraldo. Troca idéias com ele. Quando estamos sozinhos, ele comenta que é a primeira vez que vê Marilia dessa maneira.

          Ainda não entendi o que ocasionou isso. A psiquiatra, Maria Aparecida, afirma que a doença, a proximidade da morte, traz uma mudança na maneira de ver a vida. Falei com ela que aprendi isso na Escola da Vida, não na escola onde estudei psicologia. Ela trocou a medicação, mas existe um efeito colateral: um tremor na boca. Pediu-me para partir o comprimido no meio. Comprei na farmácia um objeto que se parece com um grampeador, que corta qualquer comprimido no meio, mesmo que seja pequeno e redondo. A medicação foi reduzida à metade.

          Estamos bem, felizes, mas no fundo o medo está lá, escondido.

O cachorro do inferno

                                                              O cachorro do inferno

 

          Quando meu marido, Geraldo, chegou do trabalho me encontrou dormindo. O dia havia sido muito cansativo e desmaiei na cama. No meio da noite acordei com latidos.

          - Esse cachorro latiu a noite inteira, disse Geraldo.

          Levantou-se da cama como estava: calça curta do pijama, peito descoberto e foi para o lado de fora. Ele fala muito alto e escutei alguma coisa, no meio de vários desabafos surgiu a frase:

         - Cachorro do inferno! - e continuou por alguns minutos.

         Ele veio do interior e fica chocado ao ver o comportamento das pessoas de um bairro considerado nobre, do completo desrespeito aos outros moradores, pessoas na firme convicção de que o mundo gira ao redor dos respectivos umbigos. De outra vez fomos acordados, horas a fio, pela briga de um casal, de madrugada. Aquilo foi se prolongando e não tinha fim, até que ele se levantou da cama, chegou perto do muro que separa nosso prédio da casa ao lado, onde acontecia a discussão interminável e gritou, bem alto:

         - Eta favela do Palmital! Foi o bastante. A briga terminou e nunca mais aconteceu. Depois soubemos que se tratava de um médico e sua esposa...

         Voltou a se deitar ao meu lado.

         - Esse cachorro late quando não há ninguém em casa - falei.

         - Tem gente - ele respondeu- Elas tiraram o cachorro da janela e colocaram nos fundos. Agora ele está latindo para a vizinhança do outro prédio. Eram quatro horas da madrugada, o cachorro havia ficado na janela aberta latindo, sem motivo nenhum, horas seguidas e ninguém havia tomado providências, nem as donas do cachorro.

          - Não seria mais fácil as donas dele fecharem a janela e apagarem a luz? O cachorro provavelmente dormiria, depois - falei.

          Se algum dia entrar ladrão na casa ninguém vai tomar conhecimento, porque o cachorro late sem parar, sem nenhuma motivação ou estímulo externo.

          Às vezes late em ritmo:

          - Au, au, au - pausa- au, au, au - pausa, como em código morse. Eu não conheço o código morse, mas talvez deva fazer o curso. Quem sabe o cachorro está enviando alguma mensagem?

          Gosto de animais, qualquer um. Se tivesse uma cobra acabaria gostando dela. Uma vez peguei o rato do laboratório, depois de uma experiência comportamental de Skinner e o trouxe para casa. O pessoal ia matá-lo com algodão e éter. Ficou comigo dois anos até morrer de morte natural.

          Mas ainda prefiro gatos. São silenciosos, discretos, carinhosos. Sentam-se no colo da gente e ficam ali, quietinhos, às vezes fazem um carinho em nosso rosto. Brincam sozinhos com bolinhas de papel, são graciosos e leves, acompanham seu dono o tempo todo, dentro de casa.

          Não entendo porque são tão odiados aqui no Brasil.


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

cap 5 Secretaria: Final feliz

Secretaria                                                     Final Feliz

 

              Depois da tentativa frustrada de trabalhar com os guardinhas da Secretaria, certo dia entrou em minha sala uma das colegas do setor onde faziam a contagem de tempo e anunciou que eu já podia pedir aposentadoria, já tinha tempo suficiente de serviço para isso.

             É... eu devia estar realmente incomodando o pessoal...

             Entrei com os papéis e fiquei aguardando a aposentadoria em casa.

             Algum tempo depois uma colega da minha seção me telefonou:

             - Marina, você precisa voltar - disse. Aconteceu uma mudança aqui e todos estão fazendo opção para trabalharem oito horas diárias para dobrarem o valor do vencimento. Você vai poder se aposentar ganhando o dobro do que ganha hoje.

            Voltei à Secretaria e procurei a diretora da última seção onde trabalhei. Encontrei-a na entrada da Secretaria e comuniquei minha decisão de voltar.

           - Isso vai depender do setor onde você vai trabalhar, ela falou, no meio de uma frase.

            Minha mãe sempre dizia que "para bom entendedor, uma palavra basta", ou para bom entendedor um pingo é letra. Ela não me queria em sua seção...

           Procurei o setor que cuidava desse assunto. Eu sabia que, por lei, ninguém poderia recusar um funcionário que desejasse voltar a trabalhar, mas, como sempre, não prolonguei conversa. Não me sentiria bem em um setor onde não fosse bem aceita. Mandaram-me procurar o diretor da seção da Praça da Liberdade.

           Mais uma vez escutei afirmações contrárias à lei. Mais uma vez continuei em silêncio, sabendo que aquilo tudo estava errado. Ele disse que essas pessoas que estavam querendo voltar iam ficar por pouco tempo. Nós estávamos sendo chamados de "paraquedistas". Não lutávamos pelo nosso direito, éramos considerados interesseiros. Ele não ia disponibilizar uma mesa e uma cadeira para um funcionário que ia logo voltar a pedir aposentadoria. Não falou nada sobre meu trabalho, nem tinha o menor conhecimento de minhas habilidades. Agradeci e sai. Voltei ao setor de onde havia saído.

           - Você não conseguiu vaga na Praça da Liberdade? - a colega perguntou - Todo mundo aqui está dizendo que você está trabalhando lá como assistente do diretor...

           É... eu havia recebido promoção imaginária das colegas que conheciam meu trabalho.

           Recebi outra sugestão.

           - Procure a Diana. Ela é muito boa, uma das melhores diretoras daqui.

           Fui apresentada à Diana na fila do elevador. Ela me olhou com desconfiança e aceitou minha presença em seu setor. No dia seguinte comecei a trabalhar. Pedi para ficar no computador, na sala onde trabalhava Neuza, que já havia se aposentado, mas resolveu voltar a trabalhar.

          Com o passar do tempo fomos nos tornando amigas. Soube que Diana havia passado por uma experiência dolorosa de saúde e sempre saía discretamente quando o assunto era doença. Havia sobrevivido a um câncer, tinha perdido os cabelos e depois recuperado: tinha uma vasta cabeleira ondulada, bonita, que deixava solta. Estava sempre bem humorada e os funcionários a adoravam.

          Diana, dias depois me chamou à sua sala. Para meu espanto, era para elogiar um trabalho que eu havia feito.

          Uma vez Neuza me trouxe um presente: era um gato de pelúcia.

         - Como você gosta de gatos, trouxe este para você. Achei um outro, preto, mas era muito feio. Custei a encontrar esse.

         Peguei o gato, sem palavras.

         Ainda hoje eu conservo esse gato em cima da poltrona da casa. Uma boa lembrança de um bom setor de trabalho onde fui bem recebida e meu trabalho valorizado.

 

domingo, 23 de setembro de 2012

Pais permissivos ou autoritários

Assunto: MONICA MONASTERIO


Constatação

                     Somos as primeiras gerações de pais decididos a não repetir com os filhos os erros de nossos pais. E com o esforço de abolir os abusos do passado, somos os pais mais dedicados e compreensivos, mas, por outro lado, os mais bobos e inseguros que já houve na história. O grave é que estamos lidando com crianças mais"espertas", ousadas, agressivas e poderosas do que nunca.
                    Parece que, em nossa tentativa de sermos os pais que queríamos ter, passamos de um extremo ao outro. Assim, somos a última geração de filhos que obedeceram a seus pais e a primeira geração de pais que obedecem a seus filhos. Os últimos que tiveram medo dos pais e os primeiros que temem os filhos. Os últimos que cresceram sob o mando dos pais e os primeiros que vivem sob o jugo dos filhos. E o que é pior, os últimos que respeitaram os pais e os primeiros que aceitam que os filhos lhes faltem com o respeito.

                 À medida em que o permissivo substituiu o autoritarismo, os termos das relações familiares mudaram de forma radical, para o bem e para o mal. Com efeito, antes se consideravam bons pais aqueles cujos filhos se comportavam bem, obedeciam as suas ordens e os tratavam com o devido respeito. E bons filhos, as crianças que eram formais e veneravam seus pais.

                Mas, à medida em que as fronteiras hierárquicas entre nós e nossos filhos foram-se desvanecendo, hoje, os bons pais são aqueles que conseguem que seus filhos os amem, e, ainda que pouco, os respeitem. E são os filhos quem, agora, esperam respeito de seus pais, pretendendo de tal maneira que respeitem as suas idéias, seus gostos, suas preferências e sua forma de agir e viver. E, além disso, os patrocinem no que necessitarem para tal fim. 

              Quer dizer, os papéis se inverteram, e agora são os pais quem têm de agradar a seus filhos para ganhá-los e não o inverso, como no passado. Isto explica o esforço que fazem hoje tantos pais e mães para serem os melhores amigos e "tudo dar" a seus filhos. Dizem que os extremos se atraem.

              Se o autoritarismo do passado encheu os filhos de medo de seus pais, a debilidade do presente os preenche de medo e menosprezo ao nos ver tão débeis e perdidos como eles.

              Os filhos precisam perceber que, durante a infância, estamos à frente de suas vidas, como líderes capazes de sujeitá-los quando não os podemos conter e de guiá-los enquanto não sabem para onde vão.

              Se o autoritarismo suplanta, a permissividade sufoca.

             Apenas uma atitude firme e respeitosa lhes permitirá confiar em nossa idoneidade para governar suas vidas enquanto forem menores, porque vamos à frente liderando-os e não atrás, os carregando e rendidos à sua vontade.

              É assim que evitaremos o afogamento das novas gerações no descontrole e tédio no qual está afundando uma sociedade que parece ir à deriva, sem parâmetros nem destino. Os limites abrigam o indivíduo, com amor ilimitado e profundo respeito.

             "Assim, somos a última geração de filhos que obedeceram a seus pais e a primeira geração de pais que obedecem a seus filhos".

Mônica Monasterio (Madri-Espanha)


 

 


 



sábado, 22 de setembro de 2012

Condomínio: O samba do crioulo doido


Condomínio: O samba do crioulo doido     

             Olga, mais uma vez, insistiu na idéia de ser minha patroa, gratuitamente. Tudo tem de ser urgente: pediu (pedir, no caso dela é eufemismo) a retirada de uma bauhinea, ou pata de vaca, imensa, plantada no declive do terreno ao lado de seu apto. O detalhe é que foi plantada pela sua família e estava quebrando a lateral do passeio ao redor do prédio. Concordei que era perigosa (a árvore), porque vi o estrago que a árvore da Rua Bernardo Mascarenhas causou, meses atrás, na fiação elétrica e no calçamento, quando caiu. Seu filho Arquibaldo me deu o endereço da Prefeitura (por sinal, errado, eu já tinha conseguido o certo) Trabalho de parceria, né? OK.

            1) recolhi a papelada

            2) fui à prefeitura

            3) o "homem da prefeitura" veio aqui fazer a vistoria

            4) voltei à prefeitura para pegar o laudo com a permissão da prefeitura e lista das árvores que precisavam ser cortadas ou abatidas.

            5) tirei xerox do laudo, mandei aumentar as letras e preguei em todas as portarias

             6) chamei um bombeiro (do Corpo de Bombeiros) para o orçamento.

           7) Arquibaldo disse que pensou que o bombeiro era hidráulico (só eles são espertos) e chamou outro homem.

            8) fui com ele e o outro homem, com o laudo da prefeitura vistoriar o terreno. Política e trabalho de equipe, né?

              9) o bombeiro "ganhou" o trabalho

             10) O bombeiro veio com a equipe.

            Redigi um termo de responsabilidade que ele assinou. Já tive de levar o jardineiro ao Centro Oftalmológico, depois de um acidente com leite de planta que espirrou no olho dele, paguei consulta cara e não queria repetir a dose.

            O trabalho começou. De vez em quando eu ia dar uma olhada com Geraldo (este está com distensão nas pernas, andando com dificuldade). Volta e meia algum vizinho perguntava se eu havia pedido permissão à prefeitura para o corte das árvores (tás brincando...!)

            Tudo calmo NA MINHA PRESENÇA. Depois soube que era só eu sair que o irmão encrenqueiro do Arquibaldo, Jô, ia, com mais um irmão intimar os trabalhadores a não cortar as árvores.

            - Está na lista - o bombeiro menorzinho respondia, rindo (ele tem bom humor) do alto das árvores e continuava seu serviço.

            Quando retiraram o baobá, digo, bauhínea, todo mundo se sentiu NU (baobá é uma árvore gigantesca). Um espaço enorme ficou aberto, dando visão à rua. D. Olga, me olhou com raiva e perguntou: 

              - ESTÁ SATISFEITA?! Não entendi nada. Alguém entendeu?

            Mais tarde o chefe coordenador do serviço veio me procurar dizendo que havia umas pessoas reclamando (pessoas = família da Olga) do corte das árvores, que não queriam que cortasse a avelós, que era linda (estava na lista e é extremamente venenosa), que NÃO ERA para os bombeiros FAZEREM O QUE ESTAVA NA LISTA. Alguém entendeu? Eu também não.              

          Os moradores que insistiram para que o serviço fosse feito, tentaram boicotar o trabalho... OK, respondi. As três árvores condenadas e perigosas já haviam sido suprimidas. O que não estava na lista não foi feito. Há um abacateiro que passou de liso; qualquer dia ele pode cair com as ventanias daqui, mas tudo bem.

            Resumindo: mais uma vez atendi as reclamações da família da Olga (porque concordei com o perigo da árvore) e mais uma vez recebi a faixa de VILÃ. Eu gostaria de dizer que agora, com tanta psicologia na cabeça, consigo rir do ABSURDO DA SITUAÇÃO, mas não é verdade. Não achei graça nenhuma.        

            Escrevi uma nota e joguei debaixo de todas as portas, explicando que o bombeiro recebeu o pagamento integral de um serviço que foi feito pela metade devido à interferência de alguns moradores.

 

 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Foto: Casal feliz

Meus gatos, já falecidos, Preto e Duqueza, agarradinhos dia e noite. Ela morreu aos dez anos de idade e ele aos quatorze anos

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Limites são necessários

Limites são necessários

 

Uma vez recebi, no meu consultório, uma senhora de mais de setenta anos de idade, casada recentemente, que falou em se divorciar do marido por causa da enteada. Todos tremiam de medo da moça e jamais discutiam o que ela determinasse. Já havia saído da casa, tinha seu próprio apartamento, mas ainda tinha um quarto separado na casa do pai e da minha cliente e continuava manobrando as coisas lá. Metade do guarda-roupa do casal era ocupado por roupas da moça, uma tv que não podia ser ligada – porque pertencia a ela, ficava ocupando espaço no quarto do casal e ia por aí afora.

            Escutei a história pacientemente e fiz a seguinte pergunta:

            - Quais são os seus direitos?   Se você fosse apenas companheira dele, se apenas morassem juntos, você já teria seus direitos. Mas você é casada com ele, o que significa que seus direitos são ainda maiores. Quais são os seus direitos?

            Não me lembro da resposta. Ela foi para casa e depois me telefonou, dizendo o  que havia feito: retirou as roupas da moça do guarda-roupa do casal e colocou no quarto dela, arrumadinhas. Fez o mesmo com a tv: colocou no quarto da moça, em cima de um móvel. O marido ficou chocadíssimo: - Você vai mexer nas coisas da Fulana? – perguntou. Ela fez isso e resolveu o problema: recebeu alta na psicoterapia.

            Algumas pessoas são manipuladoras e gostam de colocar outras em cordinhas e fazê-las dançar. Se a vítima cai no jogo do manipulador, acaba adoecendo ou cedendo seu espaço para ele.

            Se o manipulador não aceita palavras, não obedece, se aparece quando recebeu a recomendação de não vir porque a casa não está em condições de receber visitas e a pessoa insiste com sua presença, o que fazer?

                1)  Tratar a pessoa bem: oferecer algum conforto, dentro dos limites, evitando desarmonia.

2)      Continuar com a vida normal, como se a pessoa não estivesse ali. Seguir a programação anterior, sem facilitar a vida dela; se não faz almoço em casa, continuar a não fazer.  Se sai em determinados horários, continuar a sair, se chega no horário x, continuar a rotina habitual.

3)      Se não é possível fechar a porta de entrada da casa, é possível fechar outras portas: o seu espaço  não precisa ser invadido nem desrespeitado. Seu quarto, por exemplo, é íntimo seu, outros espaços da casa, que você não gosta que outros entrem ou mexam, idem. Se palavras não funcionam, existem chaves e chaveiros. O chaveiro pode ser chamado, a chave colocada, sem nenhuma explicação. É o seu direito.

4)      Você não precisa brigar, discutir, desgastar-se emocionalmente. Se você é naturalmente suave, doce e educada, pode reivindicar seus direitos falando em seu tom de voz normal: - Prefiro que você faça isto ou aquilo. Não gosto que você traga seus amigos para cá, isso tira minha liberdade, etc.

    A harmonia familiar é o mais importante a ser preservado e respeitado.