sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Um país de endividados...para quê?

Um país de endividados: para quê?

            Há cerca de vinte ou trinta anos atrás, quando diziam haver inflação, havia um apelo constante, nos anúncios, para que todos tivessem uma poupança. Davam exemplo de pessoas de baixa renda economizando pequenas quantias para colher o fruto tempos depois. Outro apelo era o “Mexa-se”, aconselhando exercícios físicos, que, no mínimo, incomodava os mais preguiçosos.
            Depois disso vieram uns planos econômicos que disseram: ia estabilizar a economia; um mesmo plano recebeu uma denominação diferente e foi implantado com aparente sucesso: algumas coisas ficaram mais ou menos sem aumento, mas o grosso mesmo, como o preço de automóveis, imóveis, eletrodomésticos, transporte e outros, aumentaram de forma astronômica, mas a cantilena geral era de que a inflação estava sob controle. É verdade que o preço dos alimentos sobe a cada dia, o salário continua reduzido, quem recebia dez salários mínimos no início do plano real agora recebe três, mas a inflação esteve ausente – esta é engraçada, conta outra – e só agora ameaça voltar.
            A poupança sofreu um abalo, no início do plano e foi descartada ou desvalorizada. Agora, em vez de poupança, a maioria dos brasileiros tem cartão de crédito e uma enorme dívida para pagar. Se não há inflação como é que se explica o endividamento do brasileiro? 
            Na época da juventude, não havia roupas de marca – não pagávamos a propaganda de ninguém. Havia tecidos bons, resistentes, de boa qualidade e bonitos, como brocados, rendas, linhos, tafetás, sedas, que não encontramos mais nas lojas. Quando a inflação estava alta, eu recorria às lojas populares para comprar roupas bonitas e baratas. Com o novo plano, descobri que continuo fazendo a mesma coisa, embora as roupas já não tenham a mesma qualidade.
            Esta semana recebi um folheto de um banco com uma proposta, no mínimo, indecente: -Você já tem o mais difícil que é o imóvel... seguido de uma proposta de empréstimo sobre parte do valor do imóvel que possuo. Nem terminei de ler, rasguei o papel que pode levar alguns ingênuos a acharem que estão fazendo um grande negócio, pedindo um empréstimo que provavelmente não conseguirão pagar, colocando em risco a única estabilidade de sua vida: o lugar para morar.
           Faço parte dos 10% - ou menos- de brasileiros que estão com as contas em dia, não uso cartão de crédito, só o do banco, para compras à vista e apesar disso, minha casa está em ordem, pintada, tudo em bom estado, funcionando, embora meu salário seja pouco. Por quê? Como? Porque faço o contrário da maioria das pessoas: primeiro economizo para depois comprar. Outro segredo: JAMAIS gastar todo o ordenado, sempre deixar pelo menos 20% de reserva para qualquer necessidade ou urgência. Isso, porque não conseguiria dormir se estivesse com alguma dívida pendente e posso afirmar, com orgulho, que tenho dormido muito bem ao longo de minha vida.
          A pergunta que faço, constantemente, é: qual a razão da insistência, através de telefonemas e propagandas, do incentivo ao endividamento através de cartões de crédito? O que se esconde por trás disso? Eu, hem! Sou macaca velha e não ponho a mão em cumbuca.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Querendo fazer bonito

Querendo fazer bonito

 

            Senti o rosto ardendo de vergonha. Não tinha onde enfiar a cara. Entrei em casa e não escapei do olhar de meu irmão mais novo.

            Entrei no quarto, fechei a porta e me sentei na cama. Logo o carro de Gilberto, o irmão da namorada de meu irmão, o fusca azul, que ele adorava. Acho que ele gostava mais do carro do que de qualquer pessoa ou coisa viva. A vergonha estava no meu rosto, no meu corpo, que andou encolhido da sala ao quarto.

            Meu irmão bateu na porta e entrou, em seguida:

            - O que aconteceu? Bateu o carro?

            Era impossível esconder alguma coisa dele. Eu havia ajudado minha mãe a criá-lo. Fiz mamadeiras, troquei fraldas, dei banho, vesti como se fosse um boneco, escolhendo as roupas mais bonitas, as que combinavam, embalei-o para dormir, ri de suas brincadeiras, chamei a atenção quando fazia alguma coisa errada. Agora, depois de adulto, ao lado da namorada, na sala, havia-se tornado telepático e aprendeu a ler meus pensamentos, meu rosto, o sentimento de vergonha e decepção que carreguei como uma bandeira da sala ao quarto.

            - Joguei em cima de uma árvore – falei.

            - Puxa! O carro do Gilberto? Nossa!

            Mas também... quem mandou? Ele me azucrinou o tempo todo, foi criticando tudo, foi me depenando ao longo do caminho, que nunca pareceu tão longo como naquela tarde. O pior de tudo foi a minha intenção: era jovem e solteira e queria fazer bonito, mostrar a ele como eu sabia dirigir, fazer alguma coisa bem feita, ser admirada por ele, respeitada. Bem que ele não queria que eu tocasse no seu precioso carro. Fui me sentindo humilhada ao longo do caminho até que, de repente surgiu aquela árvore e quando vi, o carro estava debaixo dela.

            - Estragou muito?

            - Um pára-lama amassado, respondi.

            Foi parecido com aquela vez em que fui passar um fim de semana em Esmeraldas. Cheguei à noite, na casa de uma amiga, fui dormir e de madrugada ouvi sons de bois entrando debaixo da janela. De manhã vi que a casa tinha uma enorme extensão, no fundo, transformando-se em uma fazenda. Na frente, era cidade, no fundo uma fazenda. Dias depois um dos rapazes estava me contando, com orgulho, como sangrava um boi e o retalhava todo, usando apenas uma faca. Fiquei horrorizada e não disse nada. No dia seguinte ele estava de cama, com febre. Acho que joguei energia negativa nele. Ele também quis fazer bonito para mim e o resultado foi desastroso.

            Procurei o catálogo telefônico e liguei para algumas oficinas mecânicas, explicando o estrago e pedindo um orçamento. No dia seguinte fui ao banco, peguei a quantia equivalente ao conserto de um pára-lama, coloquei em um envelope e pedi ao meu irmão para entregar ao Gilberto.

           Foi a maneira que encontrei de me sentir melhor.

De boas intenções o inferno anda cheio.

De boas intenções o inferno anda cheio

            A menina, agora mulher, lia pela enésima vez o livro de Charles Dickens que contava a história do velho avarento Scrooge, que acabava de receber a visita do fantasma dos Natais passados. O velho Scrooge estava alegre, feliz por reencontrar seus amigos de infância: Huckleberry Finn, Tom Sawyer, Robin Hood e outros. A moça sentiu lágrimas descendo pelo seu rosto. Eram seus amigos, também, que trouxeram alegria e aquela sensação agradável de calor no peito. Havia outros: que o velho Scrooge não conheceu, os mais femininos: Branca de Neve, a Sereiazinha, A Menina dos Fósforos, O Príncipe Feliz e dezenas e centenas de outros amigos, de várias nacionalidades.
            Sempre muito tímida, muito cedo descobriu que falava outra língua diferente; as pessoas não a entendiam. Tentava esforçar-se, dar o melhor de si, fazer parte da turma, pertencer, mas o resultado era sempre o mesmo. Foi largando tudo, aos poucos, no decorrer da vida. Foi desistindo. Concluiu que as coisas eram assim mesmo e se refugiou nos livros, nos filmes. Muitas vezes escrevia, em momentos de grande emoção e raiva, colocava tudo no papel. Chegou a enviar cartas para ex-namorados, que jamais responderam nem deram sinal de terem lido ou simplesmente recebido.  Mas era uma forma de ter alívio e satisfação de colocar seu pensamento no papel, de sair do casulo, de colocar aí seu ponto de vista, de mostrar o coração.
            Nas festas familiares continuava à margem, falando pouco, participando pouco. Na infância o contato social era sofrido, difícil, mas à medida em que ia crescendo, foi-se tornando mais fácil. Às vezes chegava a ser agradável, principalmente quando o evento era musical. Tinha a impressão de desligar-se da terra e flutuar, de criar asas e ensaiar alguns vôos baixos.
            Em momentos de angústia descobriu uma religião japonesa que trazia sempre mensagens alegres e positivas. Pegava as revistas, lia e relia e notou que se sentia melhor, mais alegre e feliz depois de cada leitura. Havia esperança em cada página. A linguagem era simples, acessível. Era Natal, comprou algumas folhinhas. Em cada página diária, uma mensagem positiva. Embrulhou para presente e entregou à sua irmã.
            - Esta é para Lourdes. Você se encontra com ela com mais freqüência, peço que entregue.
            Dias depois, a festa familiar de Natal. Convidados, almoço, confraternização. Aproximou-se da irmã, anfitriã do evento, para uma conversa informal.
            - Você não devia ter dado aquela folhinha para Lourdes, sua irmã falou.
            A menina, agora mulher, sentiu uma fincada no peito, como se um espeto estivesse entrando ali.
            - Mas... como? Só conseguiu falar.
            - Ela ficou horrorizada. Ela é católica e disse que aquilo é coisa de espiritismo.
            Continuou sentada no mesmo lugar, tentando manter a aparência normal, tentando manter a expressão do rosto impassível. Mas o espanto era enorme. Era verdade que a religião japonesa acreditava em reencarnação, nessas coisas de espiritismo, mas essas partes a gente pulava, deixava para lá. Afinal, quem é que tem certeza do que se passa após a morte? A gente ia saltando esses pedaços ou não dava importância a eles e se concentrava nas outras mensagens: no respeito aos pais, às pessoas, no cultivo do amor e do espírito de gratidão para solução de problemas diários.
            O vizinho chegou, meses depois, para uma rápida visita ao seu pai. Enquanto conversavam na sala comentou que a esposa estava no hospital. Mais uma vez a menina-mulher quis ajudar, veio com sua solidariedade.
            - Esta revista é muito boa, disse, leve para ela. Acho que vai gostar.
            Ela havia comprado vários exemplares das revistas da religião japonesa e costumava fazer doações. Queria que as pessoas sentissem aquela sensação de bem estar que ela experimentava a cada leitura, queria levar alívio ao sofrimento alheio.
            Ele olhou aquilo como se fosse algum objeto contaminado por uma doença extremamente contagiosa. Nem tocou. Fez um gesto com as mãos, para afastar a revista.
            - Cada pessoa pensa de um jeito. Cada um tem a sua religião, ninguém pode mudar a maneira do outro pensar.
            Como se ela estivesse tentando converte-lo a outra religião. Mais uma vez teve de se esforçar para manter a boca fechada, não ficar com o queixo caído de espanto. Os espantos se sucediam assim, progressivamente, um após outro.
            Acho que não sei mesmo lidar com as pessoas, pensou.
            Se ele tivesse recebido a revista e jogado na primeira lata de lixo teria feito mais bonito.
           





Cuidar & paparicar

Cuidar & paparicar

 (ano: 2010)
          Tive outro ataque de verborréia, no início desta semana. Estava tomando banho quando ouvi vozes na sala. Vesti-me e fui ver quem era. Diva estava sentada, combinando alguma coisa com Marilia. Comprar não sei o que para ela.
          - Por que você precisa da Diva para fazer suas compras? – perguntei – O Zé da Silva não está deixando você sair de casa?
                Para quem não sabe, Zé da Silva é o nome que dei ao “espírito” ou ser invisível que dita as ordens da vida dela. É a criatura que sempre diz que “hoje é o dia da morte” dela. Hoje é qualquer dia fora do quotidiano: Natal, carnaval, eleição, festa junina, viagem de outra pessoa, pipocas e vai por aí afora.  Ele é bastante trágico e ela obedece a cada mando dele, e jamais se convence da inveracidade de suas ameaças, apesar de constatar, anos a fio que nada aconteceu do que estava esperando.
          Falei tudo o que estava pensando. Que achava errado ela e Geraldo ficarem fazendo tudo o que Marilia queria. Que há dois meses Marilia não sai de casa para nada, nem para comprar pão, que eu fico esperando que ela compre, e ela acaba comendo biscoitos ou o que estiver em casa e no fim eu tenho de sair e comprar o pão – aqui na esquina, porque ela absolutamente não vai. Que ela não tem nenhum defeito nos braços e pernas e pode fazer suas compras sozinha. Que está com dificuldade para andar porque está sentada há dois meses, etc. e meu ataque de verborréia foi até o fim. Diva conservou a pose, falou com Marilia que eu falo para o bem dela, ma s que não queria provocar atrito e saiu.
          Geraldo, como sempre, ficou em silêncio e foi para o quarto. Depois de algum tempo, com muito cuidado (acho que eu sou perigosa) disse que eu estou muito cansada, esgotada e que ele vai voltar para Matipó o mais depressa possível, que vamos morar lá, mas posso vir aqui uma vez por mês, cuidar dos problemas.
          As pessoas não sabem a diferença entre cuidar e paparicar. Quando coloquei uma empregada doméstica aqui para tomar conta de Marilia, anos atrás, enquanto eu saía para trabalhar, ela me perguntou se era para fazer laranjada para Marilia... Mas...não é isso. (para quê? Se ela quiser laranjada pode fazer sozinha). Quando cheguei do trabalho encontrei Marilia sozinha em casa. Tive uma conversa com a empregada e falei que ela não havia entendido o seu trabalho: que ia voltar a fazer apenas a faxina e estava dispensada do trabalho com Marilia. Ela ainda achou ruim ter perdido o ganho extra.    
           Paparicar é fácil, mas contribui para o estacionamento, o estagnamento do paciente. Cuidar faz o paciente evoluir. Paparicar significa seguir a cabeça do paciente. Cuidar significa seguir a cabeça do cuidador.  Paparicar é por o penico (de preferência cheio de substancias malcheirosas) em cima da mesa de jantar porque o paciente quis assim. Cuidar é explicar ao paciente que o penico deve ficar no banheiro. Paparicar é deixar o paciente sem banho uma semana porque ele não quis se lavar. Cuidar é convencer ao paciente que os banhos são necessários por esta e aquela razão. Paparicar é deixar o adolescente dirigir na contramão sem carteira. Cuidar é ter autoridade para dizer não. Paparicar torna o cuidador escravo. Cuidar torna-o dono da situação e o seu trabalho mais leve.
               

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Covil e casa de campo

Covil e casa de campo

 

            Alugamos, no ano passado, o porão para um casal jovem, Diogo e Lúcia, com dois filhos pequenos. Eles tinham acabado de sair de um dos cômodos de Seu Ronin, ao lado. Tivemos pena das crianças e alugamos por um preço simbólico. Eu queria alguém para tomar conta da casa e plantar verduras no quintal. Ele pagou o primeiro mês de aluguel e só pagou mais algum quando retornávamos a Matipó, sempre dando explicações pelo atraso. Meses depois, descobrimos, através de um telefonema, que havia sumido objetos da casa e Geraldo mandou que os dois saíssem do porão, porque a casa ficou sozinha, dezenas de anos e jamais havia sumido coisa alguma. Quando retornamos, meses depois, para nosso espanto os dois ainda continuavam no porão e descobrimos que nosso gás havia acabado (havíamos comprado antes de voltarmos a BH) e quando Geraldo foi comprar o gás, viu que o botijão de reserva havia sumido. Mais um vez chamou o Diogo, que novamente estava ausente e teve uma discussão com Lúcia, mandando que saíssem do porão.

            Só conseguimos que saíssem em fevereiro e Geraldo e Diogo tiveram uma briga na hora em que o caminhão estava saindo. Diogo retornou em seguida e fez sérias ameaças a Geraldo. Como estou tarimbada em controle e manipulações, já estudei bem essa matéria, nos livros e na Escola da Vida, interrompi o que ele dizia:

           - Pára com isso, Diogo, isso não funciona com a gente. Só funciona com bobos – falei.

          Ele parou com as ameaças e ficou confuso. Entrei no porão depois que estava vazio e a sensação foi horrível: covil – foi a palavra que me veio à mente. A energia estava densa e pesada, havia sangue no chão da sala e do quarto, traças cobriam o teto e as paredes, o quintal cheio de lixo, fraldas sujas, pedras, mato alto. Além disso, o pouco que havia estava quebrado: interruptores, e até o “miolo” do tanque havia sido retirado à faca.

          Geraldo passou o dia consertando tudo, lavou as paredes e chão com mangueira e detergente e alugou o porão para seu primo, que, por acaso passou por ali contando suas dificuldades com o lugar onde morava. Dias depois a luz foi cortada e quando fomos pagar a conta ( Diogo sumiu com as contas) vimos que havia uma despesa de R$ 400,00! Pagamos e escrevi uma longa carta à Energisa, que havia religado a luz três vezes sem pagamento, apenas porque Diogo usou o nome de Geraldo para religar a luz. Escrevi que fomos vítimas de uma falcatrua e a Energisa colaborou com isso. Agora os funcionários mantêm uma distancia segura quando vêm aqui. Não sei se algum foi despedido depois da minha denúncia, mas se foi, mereceu.

            A avó de Diogo disse que os dois estavam satisfeitos com a outra casa porque havia espaço para as crianças. Agora, que retornamos, para minha surpresa vi Lucia e as crianças novamente no cômodo do Seu Ronin. Falei com Geraldo que se os dois se separaram ela tirou a sorte grande. Dias depois ela colocou a mudança em um caminhão e tornou a se mudar. Soube, depois que a senhoria havia visitado a avó de Diogo mandando ele retirar a mobília que ela ia colocar na rua porque ele não pagou a conta de luz e água. Parece que ele é firme em seus princípios: é contra os valores morais dele pagar as contas...Outros detalhes soube depois: que Diogo batia em Lúcia ( se eu soubesse disso teria chamado a polícia, sem me identificar) o porão era usado por marginais perigosos, que Diogo deixou a mulher de um policial entrar em nossa casa com o namorado, notei que colchas, lençóis e toalhas de banho e talheres sumiram e soube que Lucia havia colocado colchas diferentes e bonitas no varal. Nesse intervalo eu havia ligado dezenas de vezes para a vizinha, para saber se os dois haviam se mudado, se a casa estava em ordem e não consegui nenhuma ligação  porque ela havia trocado o número do celular...

            O primo dele é pequeno, magro, parece ter uns setenta anos e é muito respeitado na cidade. Fico observando. As mães mandam seus filhos tomarem a benção ao seu Geraldo ( é o nome dele, todo mundo em Matipó se chama Geraldo), todos param para conversar com ele. Levou terra em baldes, colocou no quintal, comprou sementes, semeou na sombra e depois plantou. Regou as flores que eu havia plantado e tudo mudou de aspecto. Em um mês já pudemos comer as bertalhas, couves e mostardas. Levei para ele cenouras com brotos e sementes de abóbora vermelha. É uma alegria ver as plantas crescendo. Nossa pia usada, de aço inoxidável, que paguei a um táxi para levar para Matipó foi colocada, por Geraldo na cozinha do porão e ficou ótima.

            Temos um novo inquilino invasor: é uma garrinchinha, muito simpática e mimosa, que faz seu ninho no telhado da casa.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A vida de cada um

A vida de cada um

                A campainha tocou. Era Iara, antiga empregada da casa, participando da vida familiar há mais de vinte anos. Agora ela era a visita. Sentou-se no sofá,  Mirna ofereceu um cafezinho. No meio da conversa, falou:
          - Você precisa pensar bem no que está fazendo, ela disse. Você tem uma vida muito boa.
          Na semana anterior Iara havia chegado cedo demais. Tocou a campainha, Mirna abriu a porta e ela caminhou até a cozinha e encontrou lá, sentado à mesa, tomando café, um homem da mesma faixa etária da patroa: alto, cabelos grisalhos, boa aparência.
          Quando ouviu a campainha ele perguntou o que devia fazer. Mirna pensou naqueles filmes onde o amante é escondido às pressas dentro do guarda-roupa ou sai pela porta dos fundos, mas naquele apartamento a porta dos fundos ficava perto da porta de entrada e o guarda-roupa não tinha tamanho suficiente para esconder um homem daquela altura e além de tudo a patroa e dona da casa era ela.
            Sorriu e disse:
          - Pode ficar aí mesmo.
          A faxineira era evangélica e havia se acostumado a ouvir confidências de várias pessoas. De Mirna ela não sabia nada, apesar do longo tempo de freqüência à  casa, de ter acompanhado os pais dela, ao longo de suas vidas. Quando fazia alguma pergunta, Mirna desviava o assunto. E agora estava ali um homem, na cozinha às 6h da manhã, tomando café com bolo.
          Ela considerava a vida de Mirna boa porque não faltava nada em casa, havia comida na mesa, a mobília era bem conservada, as contas estavam em dia. Mirna não teve nenhuma reação, mas ficou espantada com a troca de hierarquia e o desplante da situação.
          - Iara, falou, minha vida é horrível.
          Não falou das qualidades dele, nem da solidão anterior, das decepções, humilhações e agressões sofridas ao longo da vida na luta para encontrar um companheiro. Não falou dos momentos em que ia ao médico, sozinha, da falta de companhia nos momentos mais difíceis da vida, das idas, sozinha, ao cinema, da falta de reconhecimento ao seu talento nos vários ambientes de trabalho e estudo que freqüentou, das vezes em que foi dispensada pela secretária e impedida de chegar à sala do chefe para mostrar a pasta com os trabalhos. Iara continuava se apegando ao pão em cima da mesa.
          Não falou dos braços dele ao redor do seu corpo, de nenhuma cobrança ao seu aspecto físico, de nenhuma importância às mudanças causadas pelo tempo, da aceitação mútua dos  defeitos e qualidades. Não falou do apoio que recebiam um do outro, dos carinhos, das brincadeiras e do riso que havia tirado do fundo da mala, há tanto tempo escondido. Não falou nada, como não falou, anteriormente de seus pecados e fraquezas.
          Continuou ouvindo o que ela tinha a dizer. As palavras escorregaram e caíram no chão, entraram pelas frestas do assoalho e desapareceram. Só ficou a primeira frase: que a sua vida era muito boa...
          Só existe uma pessoa que pode dizer se sua vida é boa ou ruim: o dono da vida. Os de fora enxergam meio palmo do que se passa dentro do outro. Não sabemos nem mesmo distinguir o amigo do inimigo, quem nos ama e quem nos detesta debaixo de sorrisos amáveis.
          Porque somos incapazes de ler pensamentos e o ser humano é cheio de mistérios.