terça-feira, 25 de setembro de 2012

Pela primeira vez

Pela primeira vez...

 

          Depois de três meses de preocupação e correria de um lado para o outro, de muito trabalho, cansaço e lágrimas, olho com medo o momento presente.

          Marilia está lúcida.

          Não mais ou menos lúcida, fazendo uma ou outra bizarrice, levando minha paciência à exaustão. Não. Está lúcida, completamente.

          Olho essa pessoa sem reconhecê-la. Onde os diabos se esconderam? Eles saíram? Foram para outro astral? partiram definitivamente? Estamos livres, finalmente?

          Ela olha a tv, não aereamente, como antes, dividida entre dois mundos, um muito feio e assustador, outro, nem tanto. Mas acompanha a programação, ri, dá opinião, seu parecer, agora lógico.

          Não mexe na geladeira, com medo de voltar ao sofrimento anterior. Não lava mais as louças e panelas, mas deixo-a livre, com medo de que alguma coisa se quebre e o passado retorne. Espontaneamente voltou a fazer o crochê. Disse que é um ponto simples, mas olho de perto e vejo que são flores no meio de uma trama bonita, os pontos certos.

          A organização é um sintoma de lucidez.

          Quando ela estava mal, chupava laranjas no hospital e jogava os bagaços no chão. Outra interna, viciada em crack, abaixou-se e catou aquilo com as mãos e jogou no lixo, sem ninguém pedir. De outras vezes eu pegava aquilo com um saco plástico e jogava no lixo. Notei que à medida em que ia melhorando, passou a colocar os bagaços dentro do saco plástico que eu levava. Agora observo que ela toma banho todas as manhãs, arruma a cama, coloca os chinelos em uma posição organizada, mantém o quarto arrumado. Comparo esse comportamento com aquele programa da tv, Os Acumuladores, em que determinadas pessoas vão juntando roupas, objetos e comida dentro de casa, comprando objetos sem abrir os embrulhos, a tal ponto que é preciso escalar os objetos ou montanhas de roupas para entrar em casa. Sem contar os animais que se acumulam e proliferam debaixo daquela sujeira. E da angústia que sentem quando precisam se desfazer de um papel de embrulho... a desorganização externa é um sinal de desorganização mental. E vice-versa.

          Ela agora, pela primeira vez na vida, almoça junto conosco, participa de nossas refeições sem nenhum preconceito ou idéias fora da realidade. Aprendeu a gostar de pão com queijo quente, que coloco no forno, de manhã com o pão da véspera. Pede o almoço e o jantar, se atrasamos um pouco. Coloca as tampas nas panelas, coisa que nunca causou preocupação, antes.

          Todos os dias me chama para dar uma volta na calçada do prédio. Andamos de braços dados, conversando como duas pessoas normais, falando do quotidiano. Nos primeiros dias deu uma volta e pediu para entrar, por estar cansada. Agora dá duas voltas e pede uma terceira.

          Conversa com Geraldo. Troca idéias com ele. Quando estamos sozinhos, ele comenta que é a primeira vez que vê Marilia dessa maneira.

          Ainda não entendi o que ocasionou isso. A psiquiatra, Maria Aparecida, afirma que a doença, a proximidade da morte, traz uma mudança na maneira de ver a vida. Falei com ela que aprendi isso na Escola da Vida, não na escola onde estudei psicologia. Ela trocou a medicação, mas existe um efeito colateral: um tremor na boca. Pediu-me para partir o comprimido no meio. Comprei na farmácia um objeto que se parece com um grampeador, que corta qualquer comprimido no meio, mesmo que seja pequeno e redondo. A medicação foi reduzida à metade.

          Estamos bem, felizes, mas no fundo o medo está lá, escondido.

O cachorro do inferno

                                                              O cachorro do inferno

 

          Quando meu marido, Geraldo, chegou do trabalho me encontrou dormindo. O dia havia sido muito cansativo e desmaiei na cama. No meio da noite acordei com latidos.

          - Esse cachorro latiu a noite inteira, disse Geraldo.

          Levantou-se da cama como estava: calça curta do pijama, peito descoberto e foi para o lado de fora. Ele fala muito alto e escutei alguma coisa, no meio de vários desabafos surgiu a frase:

         - Cachorro do inferno! - e continuou por alguns minutos.

         Ele veio do interior e fica chocado ao ver o comportamento das pessoas de um bairro considerado nobre, do completo desrespeito aos outros moradores, pessoas na firme convicção de que o mundo gira ao redor dos respectivos umbigos. De outra vez fomos acordados, horas a fio, pela briga de um casal, de madrugada. Aquilo foi se prolongando e não tinha fim, até que ele se levantou da cama, chegou perto do muro que separa nosso prédio da casa ao lado, onde acontecia a discussão interminável e gritou, bem alto:

         - Eta favela do Palmital! Foi o bastante. A briga terminou e nunca mais aconteceu. Depois soubemos que se tratava de um médico e sua esposa...

         Voltou a se deitar ao meu lado.

         - Esse cachorro late quando não há ninguém em casa - falei.

         - Tem gente - ele respondeu- Elas tiraram o cachorro da janela e colocaram nos fundos. Agora ele está latindo para a vizinhança do outro prédio. Eram quatro horas da madrugada, o cachorro havia ficado na janela aberta latindo, sem motivo nenhum, horas seguidas e ninguém havia tomado providências, nem as donas do cachorro.

          - Não seria mais fácil as donas dele fecharem a janela e apagarem a luz? O cachorro provavelmente dormiria, depois - falei.

          Se algum dia entrar ladrão na casa ninguém vai tomar conhecimento, porque o cachorro late sem parar, sem nenhuma motivação ou estímulo externo.

          Às vezes late em ritmo:

          - Au, au, au - pausa- au, au, au - pausa, como em código morse. Eu não conheço o código morse, mas talvez deva fazer o curso. Quem sabe o cachorro está enviando alguma mensagem?

          Gosto de animais, qualquer um. Se tivesse uma cobra acabaria gostando dela. Uma vez peguei o rato do laboratório, depois de uma experiência comportamental de Skinner e o trouxe para casa. O pessoal ia matá-lo com algodão e éter. Ficou comigo dois anos até morrer de morte natural.

          Mas ainda prefiro gatos. São silenciosos, discretos, carinhosos. Sentam-se no colo da gente e ficam ali, quietinhos, às vezes fazem um carinho em nosso rosto. Brincam sozinhos com bolinhas de papel, são graciosos e leves, acompanham seu dono o tempo todo, dentro de casa.

          Não entendo porque são tão odiados aqui no Brasil.


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

cap 5 Secretaria: Final feliz

Secretaria                                                     Final Feliz

 

              Depois da tentativa frustrada de trabalhar com os guardinhas da Secretaria, certo dia entrou em minha sala uma das colegas do setor onde faziam a contagem de tempo e anunciou que eu já podia pedir aposentadoria, já tinha tempo suficiente de serviço para isso.

             É... eu devia estar realmente incomodando o pessoal...

             Entrei com os papéis e fiquei aguardando a aposentadoria em casa.

             Algum tempo depois uma colega da minha seção me telefonou:

             - Marina, você precisa voltar - disse. Aconteceu uma mudança aqui e todos estão fazendo opção para trabalharem oito horas diárias para dobrarem o valor do vencimento. Você vai poder se aposentar ganhando o dobro do que ganha hoje.

            Voltei à Secretaria e procurei a diretora da última seção onde trabalhei. Encontrei-a na entrada da Secretaria e comuniquei minha decisão de voltar.

           - Isso vai depender do setor onde você vai trabalhar, ela falou, no meio de uma frase.

            Minha mãe sempre dizia que "para bom entendedor, uma palavra basta", ou para bom entendedor um pingo é letra. Ela não me queria em sua seção...

           Procurei o setor que cuidava desse assunto. Eu sabia que, por lei, ninguém poderia recusar um funcionário que desejasse voltar a trabalhar, mas, como sempre, não prolonguei conversa. Não me sentiria bem em um setor onde não fosse bem aceita. Mandaram-me procurar o diretor da seção da Praça da Liberdade.

           Mais uma vez escutei afirmações contrárias à lei. Mais uma vez continuei em silêncio, sabendo que aquilo tudo estava errado. Ele disse que essas pessoas que estavam querendo voltar iam ficar por pouco tempo. Nós estávamos sendo chamados de "paraquedistas". Não lutávamos pelo nosso direito, éramos considerados interesseiros. Ele não ia disponibilizar uma mesa e uma cadeira para um funcionário que ia logo voltar a pedir aposentadoria. Não falou nada sobre meu trabalho, nem tinha o menor conhecimento de minhas habilidades. Agradeci e sai. Voltei ao setor de onde havia saído.

           - Você não conseguiu vaga na Praça da Liberdade? - a colega perguntou - Todo mundo aqui está dizendo que você está trabalhando lá como assistente do diretor...

           É... eu havia recebido promoção imaginária das colegas que conheciam meu trabalho.

           Recebi outra sugestão.

           - Procure a Diana. Ela é muito boa, uma das melhores diretoras daqui.

           Fui apresentada à Diana na fila do elevador. Ela me olhou com desconfiança e aceitou minha presença em seu setor. No dia seguinte comecei a trabalhar. Pedi para ficar no computador, na sala onde trabalhava Neuza, que já havia se aposentado, mas resolveu voltar a trabalhar.

          Com o passar do tempo fomos nos tornando amigas. Soube que Diana havia passado por uma experiência dolorosa de saúde e sempre saía discretamente quando o assunto era doença. Havia sobrevivido a um câncer, tinha perdido os cabelos e depois recuperado: tinha uma vasta cabeleira ondulada, bonita, que deixava solta. Estava sempre bem humorada e os funcionários a adoravam.

          Diana, dias depois me chamou à sua sala. Para meu espanto, era para elogiar um trabalho que eu havia feito.

          Uma vez Neuza me trouxe um presente: era um gato de pelúcia.

         - Como você gosta de gatos, trouxe este para você. Achei um outro, preto, mas era muito feio. Custei a encontrar esse.

         Peguei o gato, sem palavras.

         Ainda hoje eu conservo esse gato em cima da poltrona da casa. Uma boa lembrança de um bom setor de trabalho onde fui bem recebida e meu trabalho valorizado.

 

domingo, 23 de setembro de 2012

Pais permissivos ou autoritários

Assunto: MONICA MONASTERIO


Constatação

                     Somos as primeiras gerações de pais decididos a não repetir com os filhos os erros de nossos pais. E com o esforço de abolir os abusos do passado, somos os pais mais dedicados e compreensivos, mas, por outro lado, os mais bobos e inseguros que já houve na história. O grave é que estamos lidando com crianças mais"espertas", ousadas, agressivas e poderosas do que nunca.
                    Parece que, em nossa tentativa de sermos os pais que queríamos ter, passamos de um extremo ao outro. Assim, somos a última geração de filhos que obedeceram a seus pais e a primeira geração de pais que obedecem a seus filhos. Os últimos que tiveram medo dos pais e os primeiros que temem os filhos. Os últimos que cresceram sob o mando dos pais e os primeiros que vivem sob o jugo dos filhos. E o que é pior, os últimos que respeitaram os pais e os primeiros que aceitam que os filhos lhes faltem com o respeito.

                 À medida em que o permissivo substituiu o autoritarismo, os termos das relações familiares mudaram de forma radical, para o bem e para o mal. Com efeito, antes se consideravam bons pais aqueles cujos filhos se comportavam bem, obedeciam as suas ordens e os tratavam com o devido respeito. E bons filhos, as crianças que eram formais e veneravam seus pais.

                Mas, à medida em que as fronteiras hierárquicas entre nós e nossos filhos foram-se desvanecendo, hoje, os bons pais são aqueles que conseguem que seus filhos os amem, e, ainda que pouco, os respeitem. E são os filhos quem, agora, esperam respeito de seus pais, pretendendo de tal maneira que respeitem as suas idéias, seus gostos, suas preferências e sua forma de agir e viver. E, além disso, os patrocinem no que necessitarem para tal fim. 

              Quer dizer, os papéis se inverteram, e agora são os pais quem têm de agradar a seus filhos para ganhá-los e não o inverso, como no passado. Isto explica o esforço que fazem hoje tantos pais e mães para serem os melhores amigos e "tudo dar" a seus filhos. Dizem que os extremos se atraem.

              Se o autoritarismo do passado encheu os filhos de medo de seus pais, a debilidade do presente os preenche de medo e menosprezo ao nos ver tão débeis e perdidos como eles.

              Os filhos precisam perceber que, durante a infância, estamos à frente de suas vidas, como líderes capazes de sujeitá-los quando não os podemos conter e de guiá-los enquanto não sabem para onde vão.

              Se o autoritarismo suplanta, a permissividade sufoca.

             Apenas uma atitude firme e respeitosa lhes permitirá confiar em nossa idoneidade para governar suas vidas enquanto forem menores, porque vamos à frente liderando-os e não atrás, os carregando e rendidos à sua vontade.

              É assim que evitaremos o afogamento das novas gerações no descontrole e tédio no qual está afundando uma sociedade que parece ir à deriva, sem parâmetros nem destino. Os limites abrigam o indivíduo, com amor ilimitado e profundo respeito.

             "Assim, somos a última geração de filhos que obedeceram a seus pais e a primeira geração de pais que obedecem a seus filhos".

Mônica Monasterio (Madri-Espanha)


 

 


 



sábado, 22 de setembro de 2012

Condomínio: O samba do crioulo doido


Condomínio: O samba do crioulo doido     

             Olga, mais uma vez, insistiu na idéia de ser minha patroa, gratuitamente. Tudo tem de ser urgente: pediu (pedir, no caso dela é eufemismo) a retirada de uma bauhinea, ou pata de vaca, imensa, plantada no declive do terreno ao lado de seu apto. O detalhe é que foi plantada pela sua família e estava quebrando a lateral do passeio ao redor do prédio. Concordei que era perigosa (a árvore), porque vi o estrago que a árvore da Rua Bernardo Mascarenhas causou, meses atrás, na fiação elétrica e no calçamento, quando caiu. Seu filho Arquibaldo me deu o endereço da Prefeitura (por sinal, errado, eu já tinha conseguido o certo) Trabalho de parceria, né? OK.

            1) recolhi a papelada

            2) fui à prefeitura

            3) o "homem da prefeitura" veio aqui fazer a vistoria

            4) voltei à prefeitura para pegar o laudo com a permissão da prefeitura e lista das árvores que precisavam ser cortadas ou abatidas.

            5) tirei xerox do laudo, mandei aumentar as letras e preguei em todas as portarias

             6) chamei um bombeiro (do Corpo de Bombeiros) para o orçamento.

           7) Arquibaldo disse que pensou que o bombeiro era hidráulico (só eles são espertos) e chamou outro homem.

            8) fui com ele e o outro homem, com o laudo da prefeitura vistoriar o terreno. Política e trabalho de equipe, né?

              9) o bombeiro "ganhou" o trabalho

             10) O bombeiro veio com a equipe.

            Redigi um termo de responsabilidade que ele assinou. Já tive de levar o jardineiro ao Centro Oftalmológico, depois de um acidente com leite de planta que espirrou no olho dele, paguei consulta cara e não queria repetir a dose.

            O trabalho começou. De vez em quando eu ia dar uma olhada com Geraldo (este está com distensão nas pernas, andando com dificuldade). Volta e meia algum vizinho perguntava se eu havia pedido permissão à prefeitura para o corte das árvores (tás brincando...!)

            Tudo calmo NA MINHA PRESENÇA. Depois soube que era só eu sair que o irmão encrenqueiro do Arquibaldo, Jô, ia, com mais um irmão intimar os trabalhadores a não cortar as árvores.

            - Está na lista - o bombeiro menorzinho respondia, rindo (ele tem bom humor) do alto das árvores e continuava seu serviço.

            Quando retiraram o baobá, digo, bauhínea, todo mundo se sentiu NU (baobá é uma árvore gigantesca). Um espaço enorme ficou aberto, dando visão à rua. D. Olga, me olhou com raiva e perguntou: 

              - ESTÁ SATISFEITA?! Não entendi nada. Alguém entendeu?

            Mais tarde o chefe coordenador do serviço veio me procurar dizendo que havia umas pessoas reclamando (pessoas = família da Olga) do corte das árvores, que não queriam que cortasse a avelós, que era linda (estava na lista e é extremamente venenosa), que NÃO ERA para os bombeiros FAZEREM O QUE ESTAVA NA LISTA. Alguém entendeu? Eu também não.              

          Os moradores que insistiram para que o serviço fosse feito, tentaram boicotar o trabalho... OK, respondi. As três árvores condenadas e perigosas já haviam sido suprimidas. O que não estava na lista não foi feito. Há um abacateiro que passou de liso; qualquer dia ele pode cair com as ventanias daqui, mas tudo bem.

            Resumindo: mais uma vez atendi as reclamações da família da Olga (porque concordei com o perigo da árvore) e mais uma vez recebi a faixa de VILÃ. Eu gostaria de dizer que agora, com tanta psicologia na cabeça, consigo rir do ABSURDO DA SITUAÇÃO, mas não é verdade. Não achei graça nenhuma.        

            Escrevi uma nota e joguei debaixo de todas as portas, explicando que o bombeiro recebeu o pagamento integral de um serviço que foi feito pela metade devido à interferência de alguns moradores.

 

 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Foto: Casal feliz

Meus gatos, já falecidos, Preto e Duqueza, agarradinhos dia e noite. Ela morreu aos dez anos de idade e ele aos quatorze anos

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Limites são necessários

Limites são necessários

 

Uma vez recebi, no meu consultório, uma senhora de mais de setenta anos de idade, casada recentemente, que falou em se divorciar do marido por causa da enteada. Todos tremiam de medo da moça e jamais discutiam o que ela determinasse. Já havia saído da casa, tinha seu próprio apartamento, mas ainda tinha um quarto separado na casa do pai e da minha cliente e continuava manobrando as coisas lá. Metade do guarda-roupa do casal era ocupado por roupas da moça, uma tv que não podia ser ligada – porque pertencia a ela, ficava ocupando espaço no quarto do casal e ia por aí afora.

            Escutei a história pacientemente e fiz a seguinte pergunta:

            - Quais são os seus direitos?   Se você fosse apenas companheira dele, se apenas morassem juntos, você já teria seus direitos. Mas você é casada com ele, o que significa que seus direitos são ainda maiores. Quais são os seus direitos?

            Não me lembro da resposta. Ela foi para casa e depois me telefonou, dizendo o  que havia feito: retirou as roupas da moça do guarda-roupa do casal e colocou no quarto dela, arrumadinhas. Fez o mesmo com a tv: colocou no quarto da moça, em cima de um móvel. O marido ficou chocadíssimo: - Você vai mexer nas coisas da Fulana? – perguntou. Ela fez isso e resolveu o problema: recebeu alta na psicoterapia.

            Algumas pessoas são manipuladoras e gostam de colocar outras em cordinhas e fazê-las dançar. Se a vítima cai no jogo do manipulador, acaba adoecendo ou cedendo seu espaço para ele.

            Se o manipulador não aceita palavras, não obedece, se aparece quando recebeu a recomendação de não vir porque a casa não está em condições de receber visitas e a pessoa insiste com sua presença, o que fazer?

                1)  Tratar a pessoa bem: oferecer algum conforto, dentro dos limites, evitando desarmonia.

2)      Continuar com a vida normal, como se a pessoa não estivesse ali. Seguir a programação anterior, sem facilitar a vida dela; se não faz almoço em casa, continuar a não fazer.  Se sai em determinados horários, continuar a sair, se chega no horário x, continuar a rotina habitual.

3)      Se não é possível fechar a porta de entrada da casa, é possível fechar outras portas: o seu espaço  não precisa ser invadido nem desrespeitado. Seu quarto, por exemplo, é íntimo seu, outros espaços da casa, que você não gosta que outros entrem ou mexam, idem. Se palavras não funcionam, existem chaves e chaveiros. O chaveiro pode ser chamado, a chave colocada, sem nenhuma explicação. É o seu direito.

4)      Você não precisa brigar, discutir, desgastar-se emocionalmente. Se você é naturalmente suave, doce e educada, pode reivindicar seus direitos falando em seu tom de voz normal: - Prefiro que você faça isto ou aquilo. Não gosto que você traga seus amigos para cá, isso tira minha liberdade, etc.

    A harmonia familiar é o mais importante a ser preservado e respeitado.

"Panha" do café

“Panha” do café

 

                Quando a gente conversa com um roceiro, pode tocar em qualquer assunto que o comentário dele é sempre:

            - Ah! É mesmo- acompanhado de um movimento afirmativo da cabeça.

            Isso serve para qualquer assunto ou noticiário. Podemos falar do espaço sideral, planetas, computadores, internet, a reação é sempre a mesma. Não perguntam nada, não discutem, aprovam tudo. No começo pensei que estavam acompanhando a conversa, com o tempo descobri que  absolutamente não estavam entendendo nada do assunto, mas como são espertos, não dão o braço a torcer.

            Na casa da irmã de Geraldo, Fia, chegou um rapaz de boa aparência chamando por ela, do portão. Avisada da visita e ocupada com o almoço ela não se moveu e deu o recado de volta, para ele entrar. Era o responsável pela “panha do café”. Ele entrou e falou que ela apanhou dezenove sacos de café e três quartos. Fez a conta oralmente e perguntou a Geraldo se estava certo.

            Não sei se Geraldo conhece fração. Ele parece ter sofrido um trauma violento com a escola porque se retrai a cada vez que tento ensinar alguma coisa para ele. Aprende sozinho por seu próprio método e acredito que a inteligência dele seja acima da média. Ele não respondeu. Falei:

            - Repete a conta que você fez - O rapaz olhou para mim, rindo com zombaria. Parecia que ele não acreditava que uma mulher soubesse fazer contas. A maioria da roça não sabe nem assinar o nome.

            - Ela encheu dezenove sacos de café e três quartos- ele respondeu.

            - Quanto é um inteiro? – perguntei.

            - Quatro quartos é um inteiro – ele explicou (tás brincando!)

            - Quanto vale um inteiro? – perguntei, imperturbável.

            - Um inteiro é oito reais – ele respondeu.

            -Oito dividido por quatro dá dois, vezes três, seis. O valor é R$ 6,00. Quanto você calculou? – falei

            - Eu calculei R$ 5,00 – ele respondeu (sabidinho)

            - É seis, respondi, você divide 8 pelo número de baixo, 4 e multiplica pelo de cima, 3, dá seis.

            Ele se desinteressou imediatamente pela minha conta e passou a conversar com Fia, explicando que não ia poder dar todo o dinheiro da “panha do café”, que ia pagar o resto depois, etc.

            Nos meses em que acontece a “panha de café”, a maioria dos moradores vai para o campo. Alguns ganham carona em caminhões como nossos irmãos – como diria São Francisco de Assis – porcos e bois. Outros, com mais sorte, vão de ônibus. Ganham por produção. Alguns recebem um bom dinheiro nessas ocasiões. É difícil encontrar trabalhadores nesses meses. Serviço doméstico, por exemplo, é raro encontrar. Geraldo diz que o pobre, quando trabalha e consegue comprar arroz, óleo e macarrão, não se interessa em continuar trabalhando, isso é o suficiente para ele.

           

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

cap 4 Secretaria: Fantasmas do casarão

Fantasmas do Casarão

          A Secretaria mudou de endereço e se transferiu para a Praça da Liberdade. A diretoria onde eu trabalhava ocupou o primeiro andar, dividida em várias salas e eu fui trabalhar no Arquivo, no porão, ambiente considerado insalubre por causa da papelada antiga e empoeirada, documentos do pessoal inativo, que selecionávamos e organizávamos para a microfilmagem.
          Minha colega mais velha, de setenta anos, Marisa, muito considerada e respeitada no setor, entregou-me uma chave para eu fechar minhas gavetas.
          - Para que isso? – perguntei. Não tenho nada que precise ser fechado.
          Rindo, ela me entregou duas pastas usadas, com folhas em branco que eu poderia usar para anotações. Todas usavam chaves em suas gavetas.
          Dias depois, não me lembro a razão, precisei faltar ao serviço. Quando retornei encontrei minhas gavetas arrombadas. O fundo de uma delas ficou solto depois do arrombamento. Perguntei quem havia feito aquilo.
          - Foi o novo diretor, elas responderam. O nosso diretor era novato na seção. Algumas ficaram rindo maliciosamente. Fiquei me perguntando a razão daquilo.
          Em cada sala havia dezenas de pessoas. No meu setor, na parte da manhã mais de uma dúzia. À tarde, outra dúzia. Na sala ao lado, a mesma quantidade de gente, sem contar as outras salas. O diretor havia saído de sua sala, andou alguns metros, atravessou o pátio, desceu um lance de escadas, entrou no Arquivo e perguntou onde era minha mesa. Por que eu, no meio de dezenas e dezenas de pessoas? Por que foi lá justamente no dia em que eu estava ausente? Se eu tentava me manter o mais invisível possível dentro da Secretaria...
          Ele encontrou as duas pastas em branco e um artigo sobre psicologia.
          - Pelo menos ele leu o artigo? - perguntei - Talvez tenha aprendido alguma coisa.
          Meses antes da posse dele a coordenadora da minha seção comentou comigo que a única pessoa que poderia ocupar a chefia seria eu, por ser a única no setor a ter curso superior. Eu jamais ambicionei ocupar um cargo de chefia porque não me interessava por serviço burocrático, embora fizesse minhas tarefas com boa vontade.
          Peguei a chave e coloquei no lugar devido: a lata de lixo e deixei as gavetas, ou o que sobrou delas, abertas.
          Se isso acontecesse hoje, eu iria à sala dele e perguntaria o que ele estava procurando em minha mesa, o que eu poderia fazer para ajudá-lo. Isso também seria um pouco difícil, porque ele aparecia lá de vez em quando. Quem fazia todo o serviço dele era sua assistente.
          Havia um fantasma rondando o casarão: chamava-se Paranóia e era alimentado por maledicências: Ele foi lá movido a fofocas.
          Sua assistente era seu braço direito, resolvia todos os seus problemas, era sua melhor amiga...
          Meses depois a assistente ocupou o cargo de diretora em seu lugar e ele teve de se retirar.

cap 3 Secretaria: Caixa de marimbondos

Caixa de marimbondos

 

A velha surda entrava em todas as conversas, no ambiente de trabalho. O pouco que um falava era esmiuçado, analisado, estudado e distorcido, criando uma versão totalmente diferente da realidade.

Era preciso um policiamento diário das palavras e atos. Com o tempo descobri que não podia nem mesmo falar de meus gatos. Algumas pessoas, mesmo sabendo que eu me referia ao animal vertebrado, chamado irracional que se comunica através de miados, felpudinho, chegaram a pensar que eu falava em código, me referindo a um ser humano. O jeito era economizar as palavras e a comunicação, concentrar-me em um trabalho burocrático, sem nenhuma finalidade prática.

Dizem que a pessoa abusada, fisicamente ou psicologicamente, tem um enorme letreiro na testa, convidando o algoz a entrar em ação. Um homem famoso, que sofreu abusos físicos, disse que é como uma mancha de sangue na água: o aproveitador, sem consciência ou piedade, enxerga de longe.

Três anos antes eu estava trabalhando em outra seção da Secretaria.

Tinha muitos problemas na família, doença mental de uma irmã e o ambiente de trabalho não era mais tranqüilo do que o familiar. Na minha casa havia discórdia, diferenças de opiniões, reclamações, cobranças e... muito amor e respeito mútuos. No trabalho havia hostilidade silenciosa, calada, velada, escondida sob sorrisos educados. Para ficar em equilíbrio, eu saía de casa antes das seis horas e ia ao Parque Municipal participar de aulas de tai-chi-chuan ao ar livre, com outros alunos. As aulas terminavam às sete horas e eu me encaminhava a pé para o trabalho, na Praça da Liberdade, na chamada Casa Rosada, apelido que as funcionárias deram à Secretaria, por ser pintada de rosa, comparando com a casa do Presidente da Argentina. Quando entrava na sala, não havia ninguém. Eu procurava o trabalho, que já estava guardado dentro dos armários e começava, enquanto as colegas não chegavam. Às vezes o colega de outro setor, Augusto, entrava, me cumprimentava, descia quatro degraus de escada e ia para sua sala no lado oposto do corredor. Raramente nos encontrávamos. A maioria das vezes ele já havia chegado antes de mim e só nos víamos na hora do cafezinho, quando todos os funcionários já haviam chegado.

Sempre tive pavor de fofocas e evitava qualquer possibilidade de namoro dentro e nas proximidades do ambiente de trabalho ou da escola. Além disso não havia ninguém que despertasse meu interesse nesse sentido. Dedicava-me ao trabalho e embora não acreditasse nele, tentava fazer o melhor possível, esperando algum reconhecimento ou no mínimo, um elogio. Meu irmão mais velho dizia detestar seu trabalho no banco e afirmava que sua mesa era a mais bonita e bem arrumada da seção. Tentávamos, assim, compensar a frustração de um trabalho que não trazia nenhuma realização pessoal, tentando fazer o melhor possível.

Naquela semana notei algo estranho no ambiente. Uma sensação de mal-estar tomava conta de mim, quando entrava na sala, no momento em que havia alguém trabalhando. A sensação piorava à medida que minhas colegas entravam e se sentavam em suas mesas.

Coloquei o retrato do meu namorado recente em cima da minha mesa. Elas se aproximaram, fizeram comentários, riram de sua falta de cabelos no alto da cabeça, elogiaram sua barba bem feita. Notei que algumas torceram a boca, ao verem a foto, como se duvidassem de sua veracidade. Na hora do cafezinho Augusto riu ao ver o retrato e passou a mão no alto de sua própria cabeça, também desprovida de cabelos e disse que meu namorado era do time dele.

No dia seguinte, Regina entrou, e, para nosso espanto, subiu em uma das mesas para poder olhar pela janela de basculante – nossa seção ficava no porão e disse:

- Marisa está na Praça da Liberdade, com Augusto.

Na praça? No horário de trabalho? – pensei

Marisa era a mais velha da seção, uma grande dama, educada e refinada, nossa mãe a quem buscávamos conselho e alguma palavra amiga. Ela entrou, em seguida e me disse:

- Augusto quer falar com você, na sala dele.

Achei aquilo muito estranho, fora do normal. O meu trabalho pertencia à Secretaria. Ele trabalhava para outro departamento. Apesar de ser dentro da mesma repartição, os dois setores eram independentes.

- Comigo? Na sala dele? – ainda perguntei.

- É, você mesmo. Está esperando.

Levantei-me, curiosa, atravessei a sala, desci os quatro degraus e me encaminhei para a sala dele. Encontrei-o em pé e me apontou uma cadeira.

- Sente-se, por favor.

- Eu? Sentar? – perguntei, completamente confusa.- ele não era chefe, nosso trabalho era independente, fiquei sem saber absolutamente nada do que poderia se tratar.

Sentei-me e esperei o que viria em seguida. À medida em que ele falava, pensamentos me cruzavam a mente. Ele falava de minha chefe, considerada grande amiga minha.

Esquizofrenia. Só pode ser isso. Muito agitada. Os sintomas estavam ali: falava demais, saía de um assunto e ia para outro.

- Ela está esquizofrênica, mentalmente enferma – falei

Ele dizia que minha chefe estava espalhando na Secretaria que nós dois éramos amantes. Augusto era casado e jamais tivemos nenhum interesse um no outro. Tive minhas tentativas de dar certo, de encontrar um companheiro, um namorado, sempre fora do ambiente de trabalho. Jamais havia dado nenhum motivo para esse tipo de especulações. Levantei-me, de repente.

- Desculpe, Augusto, mas não vou dormir com isso. Vamos lá, conversar com ela.

Ele só faltou pedir pelo amor de Deus.

- Não posso. Tenho filhos e esposa, preciso desse emprego – falou.

- Então, vou sozinha – respondi.

Ele implorava para eu não fazer isso, que havia sido difícil ser admitido naquele emprego. Que outros funcionários já tinham sido demitidos por romance no ambiente de trabalho. Que seu amigo Marcos, havia telefonado para ele, dando conselho, dizendo que ele não devia fazer isso com a esposa, que era boa mãe e companheira. À medida em que ele falava minha indignação aumentava. Essa era a paga de ser uma funcionária dedicada que tentava dar o melhor de si. Como me manter em silêncio, depois daquela injustiça?

Saímos juntos da sala e caminhamos até a sala de minha chefe, que ficava do outro lado do edifício. Ela jamais entrava no porão, no meu setor de trabalho. Quando queria alguma tarefa extra, enviava outra funcionária para me procurar. Entramos em sua sala, juntos, passamos pela recepcionista e a encontramos conversando com outra funcionária. Perguntei se era verdade que ela andou dizendo que eu e Augusto estávamos tendo um romance.

- Falei, sim. Isso já está fervendo há muito tempo por aí – ela disse – todos já estão sabendo.

Eu não a considerava uma chefe, mas minha amiga. Várias vezes a havia procurado para desabafar, principalmente dos problemas domésticos, a doença mental de minha irmã mais nova que tumultuava toda a família. Já havia passado por todos os psiquiatras de Belo Horizonte, os considerados melhores e a doença não dava folga, nenhum remédio a tirava de seus delírios.

Fiquei literalmente de boca aberta. Não esperava essa resposta dela. Que base tinha para saber o que se passava em minha sala? Como poderia sair por aí afirmando algo que ouviu dizer, sem antes procurar maiores informações? Por que não conversou comigo antes de sair espalhando um boato por aí? Não era minha amiga?

Perdi a cabeça e falei palavrões – coisa que jamais fiz na vida. Ela disse que quando há paixão as pessoas passam por cima de tudo.

- Eu não tenho dezoito anos! – gritei.

- Acho essas coisas naturais. – ela continuou – se vocês não têm culpa de nada por que vieram até aqui, me dar satisfações? – ela perguntou.

Se fosse natural não espalharia aquilo pela repartição inteira. Quem cala consente, não diz o ditado? Como permanecer em silêncio sabendo que aquela difamação corria pelo ambiente de trabalho? Eu era um verdadeiro Barnabé, cumprindo minhas obrigações, tentando fazer um bom trabalho, datilografando páginas lindas e perfeitas, observando a correção do português e a apresentação do trabalho, ficava quieta em meu canto, ignorando fofocas, deixando cada um viver como achasse melhor, só interferindo quando alguém me procurava com um problema e esse era o resultado?

Augusto dizia que tinha dois filhos e era fiel à esposa, mas as nossas palavras caíam no vazio. Ninguém acreditava ou queria acreditar. As pessoas adoram a lama, como certos animais chamados irracionais.

- Eu vou descobrir a fonte disso tudo – falei – Vou mover uma ação por calúnia e difamação e vou tirar até as cuecas de quem falou.

Ela olhou para mim com preocupação.

- Se fui injusta, peço desculpas, quer que eu telefone para o Marcos, explicando a situação?

- Quero, respondi, ela ligou e ele não estava – Marcos era o colega de sala de Augusto, o que o havia aconselhado, dizendo que sua esposa não merecia aquilo. Eu também não merecia. Nem Augusto.

- Acho que depois disso você vai ficar diferente comigo, ela disse, acho que  nossa amizade não vai mais ser a mesma.

De volta à minha sala observei as pessoas saindo de suas salas e olhando para o corredor, espantadas com o que estava acontecendo na sala da Neide e espantadas com minha atitude. Augusto continuou lá, conversando civilizadamente, sem perder a compostura, mantendo a política e o bom senso.

- Quanto vale uma ação contra difamação e calúnia? – perguntei à advogada que trabalhava na sala ao lado da minha.

- Isso depende, varia conforme o advogado estipular – respondeu. Por que? Você também foi prejudicada?

Também, também, também... a palavra também era um sinal de que havia alguma doença infecciosa contagiando o ambiente, que outros casos semelhantes já haviam acontecido...

Imaginei que estava recebendo a indenização da ação. Que pegava aquela bolada de dinheiro, juntava tudo no pátio da Secretaria, jogaria um pouco de álcool e ia vendo aquilo se queimar, nota por nota... enquanto o responsável por aquilo tudo colocava as mãos na cabeça.

Em casa, olhando as paredes do meu quarto, as peças do quebra-cabeças foram se encaixando.

Marisa, aconselhando;

- Jamais deixe nenhum bilhete escrito. Cuidado com as palavras. É preciso muito cuidado com o que se diz, comenta ou escreve dentro desse ambiente de trabalho.

Regina, semanas anteriores, convidando Augusto para ir à sua casa e ele se recusando, amavelmente. Ela morava sozinha.

Regina, me mandando abraçar Augusto, no dia do aniversário dele e olhando para mim, atentamente, estudando minhas reações.

Regina, dizendo às colegas que eu era muito boa para resolver os problemas dos outros, mas não sabia resolver os meus próprios problemas.

Regina, brigando comigo sem nenhum motivo aparente, como se eu tivesse feito algo ofensivo com ela.

Regina, apontando outra colega, da sala ao lado e dizendo que aquela era amante de homem casado... e ninguém discutindo, ninguém contradizendo, ninguém investigando, ninguém duvidando, mas a maioria aceitando a informação como verdade absoluta.

Minha colega mostrando Regina, no ano anterior e avisando:

- Ela trabalha em todos os setores da Secretaria, vive mudando e não se fixa em lugar nenhum e estraga todos os ambientes por onde passa.

E eu havia pensado:

 - Ninguém tem esse poder...

Mas tem... Povos foram dizimados por terem sido considerados inimigos, porque um disse e outro falou isto e aquilo e um terceiro derramou sangue inocente. Basta abrir o livro de História do Brasil ou História Geral: está tudo lá. Há centenas e milhares de fontes de informações sobre isso.

Outro fato me veio à mente. No último fim de semana meu namorado Dédio me levou para conhecer um apartamento que tinha no centro da cidade. Era bem pequeno, com dois cômodos, uma cozinha e um banheiro. Já era tarde da noite e quando saímos do elevador, depois de ver o apartamento, nos encontramos com um casal de colegas, amigos da Regina, no térreo. Os dois moravam ali e ficaram espantados ao me ver em companhia masculina, altas horas da noite. Fomos tratados como crianças travessas, ambos riam muito e meu colega deu pancadinhas na minha cabeça. Como Dédio e Augusto tinham uma grande calvície no alto da cabeça, ambos tinham mais ou menos a mesma altura, a descrição do meu acompanhante se assemelhava a de Augusto e isso provavelmente foi levado para Regina, que confundiu as duas pessoas e espalhou a novidade pela Secretaria inteira. Com a colaboração de minha chefe, meu nome foi para o lixo e o casamento de Augusto para a corda bamba.

E assim a amizade que existia entre nós duas foi para o ralo.

cap 2 Secretaria: Objetivos semelhantes

Objetivos semelhantes

 

Outra pessoa me procurou, dias depois.- Tenho trabalhado com os adolescentes sobre o uso de drogas, principalmente a cola de sapateiro. É um trabalho muito bom.

Finalmente, uma cooperação e compreensão dos meus objetivos. Conversamos algum tempo e marcamos uma data para a aula expositiva. Convoquei os guardinhas, coloquei cartazes no elevador e nos locais onde precisavam transitar, diariamente.

Alguns dias antes, uma adolescente me procurou, extremamente agitada. Na entrevista que fiz, com cada um deles, ela havia me contado sobre seu colega que usava cola de sapateiro. Depois, caiu em si, pensou no que havia feito e passou a se acusar, com medo de estar provocando a futura demissão do menino.

- Se ele for despedido, a culpa foi minha. Eu fui traidora, não devia ter falado.

- Você fez bem. Ninguém vai despedir o menino. Você pode ter salvo a vida dele, isso é que é amizade, respondi.

Mas a menina continuava em seu círculo de culpa e medo. Resolvi usar uma técnica de Programação Neurolinguística, aprendida recentemente:

- O que você está ouvindo mentalmente?

- que eu sou culpada, que sou traidora.

- O que você está vendo, mentalmente?

- Vejo o meu colega indo embora, sendo dispensado, meus colegas me acusando, se afastando de mim, me isolando.

Usei a técnica para fobias. Se for bem feita, a fobia é apagada em poucos minutos.

Depois da técnica ficou mais calma e voltou ao trabalho. Pedi a ela para mandar o menino conversar comigo.

Ele veio, aéreo por causa dos efeitos da droga e tivemos uma conversa. Ouvi o que ele tinha a dizer, depois fiz algumas recomendações.

- Seu cérebro é a coisa mais preciosa que você tem. Ele comanda seu corpo e sua vida. A droga torna você mais fraco e  dependente.

A maioria das pessoas escuta o que quer escutar. As pessoas entendem o que querem entender. Essa é a razão de tanta desavença e escolhas malfeitas. As crianças tem mais possibilidades de se recuperar rapidamente de vícios e escolhas erradas, mas os pais – e professores - não sabem do seu próprio poder sobre os filhos e ficam se debatendo em desalento e desespero.

 

No dia da aula poucos compareceram. O usuário de cola de sapateiro, um menino menor que a maioria, aparentando menos idade do que tinha, também esteve ausente. Sempre notei isso, quando dava aulas no grupo escolar; ficava preocupada com o comportamento e aproveitamento de determinados alunos, marcava reunião com os pais principalmente por causa desses alunos e somente os pais dos bons alunos compareciam. Chegavam preocupados, perguntando como ia o seu filho na escola, se dava trabalho, se acompanhava as aulas direitinho.

- Seu filho não dá nenhum trabalho. É ótimo aluno, inteligente, bem educado. Você está de parabéns por ter um filho assim. – eu respondia.

Quando acabava a reunião, ficava aquela sensação de tempo perdido. Meus objetivos tinham ido pelo ralo. Os piores alunos que não mediam esforços para tornar o ambiente um inferno, que precisavam de orientação paterna, continuavam sem nenhuma assistência e eu, absolutamente não sabia o que fazer com eles. Estava sozinha e desamparada.

Colocamos os guardinhas no salão da Secretaria, um local com muito espaço para uma grande audiência... a aula começou. A colega mostrava slides com desenhos; o tipo de droga, o efeito que causava no organismo, o comportamento do usuário. Um bom trabalho. Um dos raros momentos de cooperação e compreensão num ambiente competitivo.

cap 1 Secretaria: A velha surda

A velha surda

 

Há dezenas de anos atrás havia na televisão um programa humorístico com vários quadros e personagens correspondentes. Um deles era de uma velha surda, representada por um ator, que se sentava com muita dificuldade em um banco de praça, gemendo e depois conversava com o homem que já estava ali. Ela fazia perguntas e, devido à sua surdez, distorcia tudo o que ele falava, criando uma história completamente diferente e maliciosa. Por exemplo, perguntava: - O que o senhor está fazendo aqui? E ele respondia: - Estou esperando o ônibus. Ela olhava para o telespectador com a boca aberta, surpreendida e dizia: - Ah, o senhor está esperando um homem? E ia por aí afora. Por mais que o colega de banco tentasse consertar a história, esta ia se enrolando e aumentando progressivamente, colocando seu modo de viver e dignidade em dúvida. Isso, na televisão, era muito engraçado, tão engraçado quanto o personagem bêbado de quadros cômicos, mas quando acontece  na vida real não tem graça nenhuma. A respeito do bêbado, por exemplo, é um personagem que nos faz rir no palco ou na tv, mas o convívio diário com esse tipo de pessoa é trágico e um inferno.

 

O ataque da velha surda..

 

Estava trabalhando em meu setor, na Secretaria, quando uma colega desconhecida se aproximou perguntando quem era a Marina.

            - Sou eu, respondi.

            Falou que sua seção estava precisando de psicóloga, se eu queria me mudar para lá. Fiquei olhando para ela e pensando. Era uma boa oportunidade para uma mudança. No meu setor não havia oportunidade de usar meus conhecimentos de psicologia e eu ficava realizando serviços burocráticos e trabalhando no computador.

            - Vou consultar o pessoal lá de cima e depois procuro por você, respondi.

            - O pessoal lá de cima? Ah, sim, os mestres espirituais, ela disse, e foi saindo, voltando ao seu local de trabalho, alguns andares acima.

            Essa aí fala a minha língua, pensei.

            Conversei com minha chefe, pedi transferência para o setor e comecei o trabalho.

            Não havia muito a fazer naquela seção e pensei em trabalhar no computador, mas já havia duas funcionárias ciumentas das máquinas que não gostavam quando eu tentava realizar algum trabalho nos computadores delas. Os funcionários costumam se apegar às máquinas como se tivessem feito algum investimento e detestam quando outros mexem no que pensam ser seu.

            Encontrei, na gaveta, um planejamento para um trabalho com os funcionários mirins da Secretaria, também chamados guardinhas. Li a papelada e achei interessante fazer um trabalho com aqueles adolescentes. Sabendo disso, começou um rumor na seção. Conversei com minha colega Marlene, que havia feito aquela pesquisa, meses atrás, e, para meu espanto, ela não demonstrou nenhum interesse. Disse que não ia tomar conhecimento daquilo... Cometi o primeiro erro: não me aprofundei nesta dúvida, no porquê do desinteresse dela em eu colocar em prática o seu trabalho escrito.

Quando fiz a primeira reunião com os adolescentes, fiquei espantada porque eles faziam reivindicações a respeito do salário e do valor do vale-refeição, afirmando que mal dava para um lanche. Meu objetivo com eles era outro: de usar a psicologia para melhorar a vida deles, ensinando-os a lidar melhor com problemas, melhorar o desempenho no trabalho e na escola, valorizar aquele emprego, porta aberta para outros empregos futuros.

            - Achei estranho eles discutirem o valor do vale-refeição, comigo, falei com Vânia, sentada ao meu lado.

            - Ontem alguns guardinhas procuraram Marlene para saberem o assunto da reunião e ela falou com eles que você ia aumentar o valor do vale-refeição, explicou Vânia, ela tem essa mania de adiantar o assunto sem saber do que se trata.

            - Não tenho poder para isso, respondi, nem sei qual é o setor que cuida dos vales-refeições.

            Tentei, durante aquela semana, fazer um bom trabalho com esses adolescentes. Dei um questionário a cada um e esperei, ansiosa, pelas respostas, para começarem as reuniões em grupo. Quando recebi a papelada, fui tomada de grande decepção: depois de ler cada relatório, a conclusão seria: os meninos não tinham nenhum problema em suas vidas, o relacionamento familiar era muito bom, moravam em casa própria, alimentavam-se normalmente, realizavam o trabalho na Secretaria tranquilamente, etc. Tive vontade de rasgar em pedacinhos cada um daqueles relatórios inúteis e falsos, mas guardei-os na gaveta. Como fazer um trabalho de psicologia com criaturas sem nenhum problema em suas vidas? Eu sabia que a esmagadora maioria vinha de meio pobre, que passavam dificuldades financeiras, que aquele salário era extremamente precioso para sua contribuição na renda familiar, que havia alguns viciados em cheirar cola de sapateiro, que suas famílias eram desestruturadas e alguns sofriam violência física, outros praticaram sexo no ambiente de trabalho.

            - Todos dizem morar em casa própria. Como é isso se têm baixa renda? – perguntei à Vânia, sentada ao meu lado, à grande mesa que compartilhávamos.

            - São famílias inteiras morando em um lote. Cada uma constrói sua moradia em um mesmo terreno. Ou então moram em cortiços, explicou minha colega.

            A chefe passou por minha mesa e disse que eu devia falar com os funcionários mirins sobre seus deveres e não apenas sobre seus direitos. Notei que a seção inteira parecia estar sentada em uma caixa de marimbondos. Volta e meia ouvia algum boato sobre o meu trabalho.

            Certa manhã, entrou uma funcionária em minha sala. Ela trabalhava na sala que ficava nos fundos do corredor, vizinha à da chefe. Olhei para ela com espanto e me perguntei se ela havia dormido à noite. Chegou desfeita, os olhos inchados, com olheiras, cabelo maltratado, parecendo fora de si. Veio direto à minha mesa e despejou um discurso em cima de mim. Fiquei muda, escutando aquelas aberrações. Debaixo daquele palavrório, daquele ataque de verborréia, consegui apreender alguma coisa: ela comparava seu salário com o salário mínimo dos adolescentes e concluiu que todos ali ganhavam menos do que os adolescentes, porque estes tinham os direitos x, y e z enquanto a maioria dos funcionários não tinha nada. Declarações falsas e absurdas. O salário dos funcionários era, no mínimo, três vezes maior do que os deles  e os outros funcionários que haviam sido efetivados no nível superior, recebiam ainda mais.

            Fiquei me perguntando o que havia feito aquela funcionária perder noites de sono, debater-se em agonia, levantar-se de sua sala, caminhar pelo corredor e me procurar se o meu trabalho era com adolescentes e ela e os outros funcionários da seção não tinham nada a ver com aquilo... Procurou-me como se tivesse de lutar pelos seus direitos.

            Nem tive tempo de responder. Fiquei ali, de boca aberta, vendo aquela cena ridícula e absurda. Da mesma forma em que entrou na sala ela saiu. A velha surda havia entrado em ação. Pegou uma palavra no ar e foi tecendo uma história a partir daí. Parece que corria um boato pela seção de que eu ia aumentar o salário dos meninos!  Como se tivesse algum poder para isso...

Depois disso as pessoas passaram a me evitar, simplesmente porque não agüentei ficar sentada em uma cadeira trabalhando pouco e fui inventar um serviço para me sentir útil e tentar ajudar alguns membros menos respeitados e desfavorecidos da secretaria. O que elas desconheciam é que era uma funcionária do Estado como todos ali e meu salário também estava fora das normas porque eu tinha dois cursos superiores e havia sido efetivada como se tivesse apenas o diploma de segundo grau. Se tivesse algum poder para melhorar condições salariais começaria pelo meu salário...