terça-feira, 2 de outubro de 2012

A vida de cada um

A vida de cada um

                A campainha tocou. Era Iara, antiga empregada da casa, participando da vida familiar há mais de vinte anos. Agora ela era a visita. Sentou-se no sofá,  Mirna ofereceu um cafezinho. No meio da conversa, falou:
          - Você precisa pensar bem no que está fazendo, ela disse. Você tem uma vida muito boa.
          Na semana anterior Iara havia chegado cedo demais. Tocou a campainha, Mirna abriu a porta e ela caminhou até a cozinha e encontrou lá, sentado à mesa, tomando café, um homem da mesma faixa etária da patroa: alto, cabelos grisalhos, boa aparência.
          Quando ouviu a campainha ele perguntou o que devia fazer. Mirna pensou naqueles filmes onde o amante é escondido às pressas dentro do guarda-roupa ou sai pela porta dos fundos, mas naquele apartamento a porta dos fundos ficava perto da porta de entrada e o guarda-roupa não tinha tamanho suficiente para esconder um homem daquela altura e além de tudo a patroa e dona da casa era ela.
            Sorriu e disse:
          - Pode ficar aí mesmo.
          A faxineira era evangélica e havia se acostumado a ouvir confidências de várias pessoas. De Mirna ela não sabia nada, apesar do longo tempo de freqüência à  casa, de ter acompanhado os pais dela, ao longo de suas vidas. Quando fazia alguma pergunta, Mirna desviava o assunto. E agora estava ali um homem, na cozinha às 6h da manhã, tomando café com bolo.
          Ela considerava a vida de Mirna boa porque não faltava nada em casa, havia comida na mesa, a mobília era bem conservada, as contas estavam em dia. Mirna não teve nenhuma reação, mas ficou espantada com a troca de hierarquia e o desplante da situação.
          - Iara, falou, minha vida é horrível.
          Não falou das qualidades dele, nem da solidão anterior, das decepções, humilhações e agressões sofridas ao longo da vida na luta para encontrar um companheiro. Não falou dos momentos em que ia ao médico, sozinha, da falta de companhia nos momentos mais difíceis da vida, das idas, sozinha, ao cinema, da falta de reconhecimento ao seu talento nos vários ambientes de trabalho e estudo que freqüentou, das vezes em que foi dispensada pela secretária e impedida de chegar à sala do chefe para mostrar a pasta com os trabalhos. Iara continuava se apegando ao pão em cima da mesa.
          Não falou dos braços dele ao redor do seu corpo, de nenhuma cobrança ao seu aspecto físico, de nenhuma importância às mudanças causadas pelo tempo, da aceitação mútua dos  defeitos e qualidades. Não falou do apoio que recebiam um do outro, dos carinhos, das brincadeiras e do riso que havia tirado do fundo da mala, há tanto tempo escondido. Não falou nada, como não falou, anteriormente de seus pecados e fraquezas.
          Continuou ouvindo o que ela tinha a dizer. As palavras escorregaram e caíram no chão, entraram pelas frestas do assoalho e desapareceram. Só ficou a primeira frase: que a sua vida era muito boa...
          Só existe uma pessoa que pode dizer se sua vida é boa ou ruim: o dono da vida. Os de fora enxergam meio palmo do que se passa dentro do outro. Não sabemos nem mesmo distinguir o amigo do inimigo, quem nos ama e quem nos detesta debaixo de sorrisos amáveis.
          Porque somos incapazes de ler pensamentos e o ser humano é cheio de mistérios.

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