quarta-feira, 10 de outubro de 2012

De boas intenções o inferno anda cheio.

De boas intenções o inferno anda cheio

            A menina, agora mulher, lia pela enésima vez o livro de Charles Dickens que contava a história do velho avarento Scrooge, que acabava de receber a visita do fantasma dos Natais passados. O velho Scrooge estava alegre, feliz por reencontrar seus amigos de infância: Huckleberry Finn, Tom Sawyer, Robin Hood e outros. A moça sentiu lágrimas descendo pelo seu rosto. Eram seus amigos, também, que trouxeram alegria e aquela sensação agradável de calor no peito. Havia outros: que o velho Scrooge não conheceu, os mais femininos: Branca de Neve, a Sereiazinha, A Menina dos Fósforos, O Príncipe Feliz e dezenas e centenas de outros amigos, de várias nacionalidades.
            Sempre muito tímida, muito cedo descobriu que falava outra língua diferente; as pessoas não a entendiam. Tentava esforçar-se, dar o melhor de si, fazer parte da turma, pertencer, mas o resultado era sempre o mesmo. Foi largando tudo, aos poucos, no decorrer da vida. Foi desistindo. Concluiu que as coisas eram assim mesmo e se refugiou nos livros, nos filmes. Muitas vezes escrevia, em momentos de grande emoção e raiva, colocava tudo no papel. Chegou a enviar cartas para ex-namorados, que jamais responderam nem deram sinal de terem lido ou simplesmente recebido.  Mas era uma forma de ter alívio e satisfação de colocar seu pensamento no papel, de sair do casulo, de colocar aí seu ponto de vista, de mostrar o coração.
            Nas festas familiares continuava à margem, falando pouco, participando pouco. Na infância o contato social era sofrido, difícil, mas à medida em que ia crescendo, foi-se tornando mais fácil. Às vezes chegava a ser agradável, principalmente quando o evento era musical. Tinha a impressão de desligar-se da terra e flutuar, de criar asas e ensaiar alguns vôos baixos.
            Em momentos de angústia descobriu uma religião japonesa que trazia sempre mensagens alegres e positivas. Pegava as revistas, lia e relia e notou que se sentia melhor, mais alegre e feliz depois de cada leitura. Havia esperança em cada página. A linguagem era simples, acessível. Era Natal, comprou algumas folhinhas. Em cada página diária, uma mensagem positiva. Embrulhou para presente e entregou à sua irmã.
            - Esta é para Lourdes. Você se encontra com ela com mais freqüência, peço que entregue.
            Dias depois, a festa familiar de Natal. Convidados, almoço, confraternização. Aproximou-se da irmã, anfitriã do evento, para uma conversa informal.
            - Você não devia ter dado aquela folhinha para Lourdes, sua irmã falou.
            A menina, agora mulher, sentiu uma fincada no peito, como se um espeto estivesse entrando ali.
            - Mas... como? Só conseguiu falar.
            - Ela ficou horrorizada. Ela é católica e disse que aquilo é coisa de espiritismo.
            Continuou sentada no mesmo lugar, tentando manter a aparência normal, tentando manter a expressão do rosto impassível. Mas o espanto era enorme. Era verdade que a religião japonesa acreditava em reencarnação, nessas coisas de espiritismo, mas essas partes a gente pulava, deixava para lá. Afinal, quem é que tem certeza do que se passa após a morte? A gente ia saltando esses pedaços ou não dava importância a eles e se concentrava nas outras mensagens: no respeito aos pais, às pessoas, no cultivo do amor e do espírito de gratidão para solução de problemas diários.
            O vizinho chegou, meses depois, para uma rápida visita ao seu pai. Enquanto conversavam na sala comentou que a esposa estava no hospital. Mais uma vez a menina-mulher quis ajudar, veio com sua solidariedade.
            - Esta revista é muito boa, disse, leve para ela. Acho que vai gostar.
            Ela havia comprado vários exemplares das revistas da religião japonesa e costumava fazer doações. Queria que as pessoas sentissem aquela sensação de bem estar que ela experimentava a cada leitura, queria levar alívio ao sofrimento alheio.
            Ele olhou aquilo como se fosse algum objeto contaminado por uma doença extremamente contagiosa. Nem tocou. Fez um gesto com as mãos, para afastar a revista.
            - Cada pessoa pensa de um jeito. Cada um tem a sua religião, ninguém pode mudar a maneira do outro pensar.
            Como se ela estivesse tentando converte-lo a outra religião. Mais uma vez teve de se esforçar para manter a boca fechada, não ficar com o queixo caído de espanto. Os espantos se sucediam assim, progressivamente, um após outro.
            Acho que não sei mesmo lidar com as pessoas, pensou.
            Se ele tivesse recebido a revista e jogado na primeira lata de lixo teria feito mais bonito.
           





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