terça-feira, 25 de setembro de 2012

Pela primeira vez

Pela primeira vez...

 

          Depois de três meses de preocupação e correria de um lado para o outro, de muito trabalho, cansaço e lágrimas, olho com medo o momento presente.

          Marilia está lúcida.

          Não mais ou menos lúcida, fazendo uma ou outra bizarrice, levando minha paciência à exaustão. Não. Está lúcida, completamente.

          Olho essa pessoa sem reconhecê-la. Onde os diabos se esconderam? Eles saíram? Foram para outro astral? partiram definitivamente? Estamos livres, finalmente?

          Ela olha a tv, não aereamente, como antes, dividida entre dois mundos, um muito feio e assustador, outro, nem tanto. Mas acompanha a programação, ri, dá opinião, seu parecer, agora lógico.

          Não mexe na geladeira, com medo de voltar ao sofrimento anterior. Não lava mais as louças e panelas, mas deixo-a livre, com medo de que alguma coisa se quebre e o passado retorne. Espontaneamente voltou a fazer o crochê. Disse que é um ponto simples, mas olho de perto e vejo que são flores no meio de uma trama bonita, os pontos certos.

          A organização é um sintoma de lucidez.

          Quando ela estava mal, chupava laranjas no hospital e jogava os bagaços no chão. Outra interna, viciada em crack, abaixou-se e catou aquilo com as mãos e jogou no lixo, sem ninguém pedir. De outras vezes eu pegava aquilo com um saco plástico e jogava no lixo. Notei que à medida em que ia melhorando, passou a colocar os bagaços dentro do saco plástico que eu levava. Agora observo que ela toma banho todas as manhãs, arruma a cama, coloca os chinelos em uma posição organizada, mantém o quarto arrumado. Comparo esse comportamento com aquele programa da tv, Os Acumuladores, em que determinadas pessoas vão juntando roupas, objetos e comida dentro de casa, comprando objetos sem abrir os embrulhos, a tal ponto que é preciso escalar os objetos ou montanhas de roupas para entrar em casa. Sem contar os animais que se acumulam e proliferam debaixo daquela sujeira. E da angústia que sentem quando precisam se desfazer de um papel de embrulho... a desorganização externa é um sinal de desorganização mental. E vice-versa.

          Ela agora, pela primeira vez na vida, almoça junto conosco, participa de nossas refeições sem nenhum preconceito ou idéias fora da realidade. Aprendeu a gostar de pão com queijo quente, que coloco no forno, de manhã com o pão da véspera. Pede o almoço e o jantar, se atrasamos um pouco. Coloca as tampas nas panelas, coisa que nunca causou preocupação, antes.

          Todos os dias me chama para dar uma volta na calçada do prédio. Andamos de braços dados, conversando como duas pessoas normais, falando do quotidiano. Nos primeiros dias deu uma volta e pediu para entrar, por estar cansada. Agora dá duas voltas e pede uma terceira.

          Conversa com Geraldo. Troca idéias com ele. Quando estamos sozinhos, ele comenta que é a primeira vez que vê Marilia dessa maneira.

          Ainda não entendi o que ocasionou isso. A psiquiatra, Maria Aparecida, afirma que a doença, a proximidade da morte, traz uma mudança na maneira de ver a vida. Falei com ela que aprendi isso na Escola da Vida, não na escola onde estudei psicologia. Ela trocou a medicação, mas existe um efeito colateral: um tremor na boca. Pediu-me para partir o comprimido no meio. Comprei na farmácia um objeto que se parece com um grampeador, que corta qualquer comprimido no meio, mesmo que seja pequeno e redondo. A medicação foi reduzida à metade.

          Estamos bem, felizes, mas no fundo o medo está lá, escondido.

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