quarta-feira, 19 de setembro de 2012

cap 1 Secretaria: A velha surda

A velha surda

 

Há dezenas de anos atrás havia na televisão um programa humorístico com vários quadros e personagens correspondentes. Um deles era de uma velha surda, representada por um ator, que se sentava com muita dificuldade em um banco de praça, gemendo e depois conversava com o homem que já estava ali. Ela fazia perguntas e, devido à sua surdez, distorcia tudo o que ele falava, criando uma história completamente diferente e maliciosa. Por exemplo, perguntava: - O que o senhor está fazendo aqui? E ele respondia: - Estou esperando o ônibus. Ela olhava para o telespectador com a boca aberta, surpreendida e dizia: - Ah, o senhor está esperando um homem? E ia por aí afora. Por mais que o colega de banco tentasse consertar a história, esta ia se enrolando e aumentando progressivamente, colocando seu modo de viver e dignidade em dúvida. Isso, na televisão, era muito engraçado, tão engraçado quanto o personagem bêbado de quadros cômicos, mas quando acontece  na vida real não tem graça nenhuma. A respeito do bêbado, por exemplo, é um personagem que nos faz rir no palco ou na tv, mas o convívio diário com esse tipo de pessoa é trágico e um inferno.

 

O ataque da velha surda..

 

Estava trabalhando em meu setor, na Secretaria, quando uma colega desconhecida se aproximou perguntando quem era a Marina.

            - Sou eu, respondi.

            Falou que sua seção estava precisando de psicóloga, se eu queria me mudar para lá. Fiquei olhando para ela e pensando. Era uma boa oportunidade para uma mudança. No meu setor não havia oportunidade de usar meus conhecimentos de psicologia e eu ficava realizando serviços burocráticos e trabalhando no computador.

            - Vou consultar o pessoal lá de cima e depois procuro por você, respondi.

            - O pessoal lá de cima? Ah, sim, os mestres espirituais, ela disse, e foi saindo, voltando ao seu local de trabalho, alguns andares acima.

            Essa aí fala a minha língua, pensei.

            Conversei com minha chefe, pedi transferência para o setor e comecei o trabalho.

            Não havia muito a fazer naquela seção e pensei em trabalhar no computador, mas já havia duas funcionárias ciumentas das máquinas que não gostavam quando eu tentava realizar algum trabalho nos computadores delas. Os funcionários costumam se apegar às máquinas como se tivessem feito algum investimento e detestam quando outros mexem no que pensam ser seu.

            Encontrei, na gaveta, um planejamento para um trabalho com os funcionários mirins da Secretaria, também chamados guardinhas. Li a papelada e achei interessante fazer um trabalho com aqueles adolescentes. Sabendo disso, começou um rumor na seção. Conversei com minha colega Marlene, que havia feito aquela pesquisa, meses atrás, e, para meu espanto, ela não demonstrou nenhum interesse. Disse que não ia tomar conhecimento daquilo... Cometi o primeiro erro: não me aprofundei nesta dúvida, no porquê do desinteresse dela em eu colocar em prática o seu trabalho escrito.

Quando fiz a primeira reunião com os adolescentes, fiquei espantada porque eles faziam reivindicações a respeito do salário e do valor do vale-refeição, afirmando que mal dava para um lanche. Meu objetivo com eles era outro: de usar a psicologia para melhorar a vida deles, ensinando-os a lidar melhor com problemas, melhorar o desempenho no trabalho e na escola, valorizar aquele emprego, porta aberta para outros empregos futuros.

            - Achei estranho eles discutirem o valor do vale-refeição, comigo, falei com Vânia, sentada ao meu lado.

            - Ontem alguns guardinhas procuraram Marlene para saberem o assunto da reunião e ela falou com eles que você ia aumentar o valor do vale-refeição, explicou Vânia, ela tem essa mania de adiantar o assunto sem saber do que se trata.

            - Não tenho poder para isso, respondi, nem sei qual é o setor que cuida dos vales-refeições.

            Tentei, durante aquela semana, fazer um bom trabalho com esses adolescentes. Dei um questionário a cada um e esperei, ansiosa, pelas respostas, para começarem as reuniões em grupo. Quando recebi a papelada, fui tomada de grande decepção: depois de ler cada relatório, a conclusão seria: os meninos não tinham nenhum problema em suas vidas, o relacionamento familiar era muito bom, moravam em casa própria, alimentavam-se normalmente, realizavam o trabalho na Secretaria tranquilamente, etc. Tive vontade de rasgar em pedacinhos cada um daqueles relatórios inúteis e falsos, mas guardei-os na gaveta. Como fazer um trabalho de psicologia com criaturas sem nenhum problema em suas vidas? Eu sabia que a esmagadora maioria vinha de meio pobre, que passavam dificuldades financeiras, que aquele salário era extremamente precioso para sua contribuição na renda familiar, que havia alguns viciados em cheirar cola de sapateiro, que suas famílias eram desestruturadas e alguns sofriam violência física, outros praticaram sexo no ambiente de trabalho.

            - Todos dizem morar em casa própria. Como é isso se têm baixa renda? – perguntei à Vânia, sentada ao meu lado, à grande mesa que compartilhávamos.

            - São famílias inteiras morando em um lote. Cada uma constrói sua moradia em um mesmo terreno. Ou então moram em cortiços, explicou minha colega.

            A chefe passou por minha mesa e disse que eu devia falar com os funcionários mirins sobre seus deveres e não apenas sobre seus direitos. Notei que a seção inteira parecia estar sentada em uma caixa de marimbondos. Volta e meia ouvia algum boato sobre o meu trabalho.

            Certa manhã, entrou uma funcionária em minha sala. Ela trabalhava na sala que ficava nos fundos do corredor, vizinha à da chefe. Olhei para ela com espanto e me perguntei se ela havia dormido à noite. Chegou desfeita, os olhos inchados, com olheiras, cabelo maltratado, parecendo fora de si. Veio direto à minha mesa e despejou um discurso em cima de mim. Fiquei muda, escutando aquelas aberrações. Debaixo daquele palavrório, daquele ataque de verborréia, consegui apreender alguma coisa: ela comparava seu salário com o salário mínimo dos adolescentes e concluiu que todos ali ganhavam menos do que os adolescentes, porque estes tinham os direitos x, y e z enquanto a maioria dos funcionários não tinha nada. Declarações falsas e absurdas. O salário dos funcionários era, no mínimo, três vezes maior do que os deles  e os outros funcionários que haviam sido efetivados no nível superior, recebiam ainda mais.

            Fiquei me perguntando o que havia feito aquela funcionária perder noites de sono, debater-se em agonia, levantar-se de sua sala, caminhar pelo corredor e me procurar se o meu trabalho era com adolescentes e ela e os outros funcionários da seção não tinham nada a ver com aquilo... Procurou-me como se tivesse de lutar pelos seus direitos.

            Nem tive tempo de responder. Fiquei ali, de boca aberta, vendo aquela cena ridícula e absurda. Da mesma forma em que entrou na sala ela saiu. A velha surda havia entrado em ação. Pegou uma palavra no ar e foi tecendo uma história a partir daí. Parece que corria um boato pela seção de que eu ia aumentar o salário dos meninos!  Como se tivesse algum poder para isso...

Depois disso as pessoas passaram a me evitar, simplesmente porque não agüentei ficar sentada em uma cadeira trabalhando pouco e fui inventar um serviço para me sentir útil e tentar ajudar alguns membros menos respeitados e desfavorecidos da secretaria. O que elas desconheciam é que era uma funcionária do Estado como todos ali e meu salário também estava fora das normas porque eu tinha dois cursos superiores e havia sido efetivada como se tivesse apenas o diploma de segundo grau. Se tivesse algum poder para melhorar condições salariais começaria pelo meu salário...

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