sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A tirania do fraco 1 Eu sei mais do que você

A tirania do fraco 1

Eu sei mais do que você

                                                                           

Há muitos anos, quando eu era estudante das quatro primeiras séries, uma professora, em um momento de impaciência, depois de ouvir alguma observação insubordinada de um aluno, disse, sacudindo o livro didático da turma:

            - O que você está pensando? Eu não estudo somente neste livrinho de vocês!

            Ao ouvir isso, o pensamento que me veio foi: - E é preciso estudar mais do que esse livro para dar aulas para nós?

            Quando me tornei professora das últimas séries do primeiro grau, de 5ª a 8ª, durante as aulas de Educação Artística, nas salas mais adiantadas, de alunos mais inteligentes e dedicados, ficava em dúvida se estava ensinando matéria abaixo da capacidade deles. Mas notava que eles faziam as tarefas sem reclamar, de boa vontade, parecendo gostar. Surgiam, depois, pequenas obras de arte que eu colava nas paredes do corredor da escola. Para não criar polêmica fazia isso com todas as salas, independente do talento artístico.

            A coisa mudava quando eu entrava em salas de nível mais baixo, tanto de aproveitamento quanto de comportamento. Os alunos cometiam erros graves de português, o ambiente era tumultuado, os boletins continham mais notas vermelhas do que azuis, tinham dificuldade de aprendizagem, se negavam a fazer as tarefas ou faziam sem nenhum capricho, para se livrarem, em poucos minutos. Era um gasto enorme de energia dar aula nessas classes. Alguns me desafiavam e, para meu espanto, questionavam meu ensino e até meu grau de instrução...

            O presidente da China, Mao Tsé Tung, ao assumir o poder, mandou seus soldados destruírem toda a arte e livros da China, considerados imperialistas. Alguns soldados choravam aos destruírem os magníficos palácios. Quanto tempo se leva para construir um palácio, levantar um edifício, escrever um livro, pintar um quadro? E quanto tempo se leva para destruir a obra, o coração e a alma do artista?  Ficou mais uma pergunta: O que os destruidores tinham de melhor para colocar no lugar daquilo que destruíram? O que eles deixaram? Macacões azuis e cinzas?

            O animal é gracioso, brinca, corre, aprecia a vida. Leva alguns anos para crescer e aprender o básico para sobreviver. O destruidor pega aquele ser cheio de energia e, em segundos, o transforma em sangue e podridão.

            É assim que pessoas sem capacidade conseguem destruir o trabalho das mais capazes.

            Vivi isso anos seguidos, em uma escola pública. Por mais que me esforçasse, não conseguia disciplina em sala de aula. A diretora, em lugar de apoio à professora novata e inexperiente, dizia que a classe era o espelho da professora, mas eu me perguntava se o problema era a fome, a família desestruturada, a pobreza, a falta de interesse dos pais pelos filhos que os mandavam à escola para ficarem livres deles.

Todo trabalho, toda idéia era derrubada como um castelo de cartas ou como aquele jogo de dominó em que as pedras são colocadas verticalmente e basta um leve toque em uma para que todas caiam, em seqüência. A professora de Educação Física, cheia de entusiasmo, organizou uma gincana que movimentou a escola toda para angariar fundos com um determinado objetivo. Organizou grupos para as tarefas: quem conseguisse maior número de caixinhas de material de higiene ou remédios, ganharia. O dia inteiro foi aquele movimento de alunos e professores. Entretida com as minhas aulas, não participei nem entendi muito bem o motivo da gincana, mas a escola estava cheia de vida. No intervalo das aulas sentei-me à mesa, na sala dos professores e a diretora se sentou do lado oposto. Sobre a mesa, uma pilha de caixinhas de remédio ou pasta de dentes. Para meu espanto, vi a diretora ensinando alguns alunos a trapacear; colocando caixas vazias junto com as cheias para ganharem a competição. – Ela está roubando de si mesma – pensei. No final da gincana a professora estava exausta e visivelmente decepcionada com todo o trabalho frustrante que realizara. 

Outro comportamento absurdo era a troca de cargos e funções. A professora fazia um curso e chegava entusiasmada, querendo colocar em prática a aprendizagem. Uma delas havia acabado de completar o curso de supervisora e ofereceu seus préstimos. A diretora deixou que ela continuasse em sua sala de aula, sem nenhuma oportunidade de melhoria e entregou aquela função a outra que não havia feito o curso e não tinha o mesmo preparo.

Como um monarca, com poderes absolutos, uma vez trocou a função de várias professoras. Disse que não havia vaga para a minha matéria que eu teria de lecionar Educação Física. A professora de Educação Física trabalhava no gabinete. Falei, com minha ingenuidade de novata, durante essa reunião de professores, que não podia lecionar Educação Física por não ter nenhum conhecimento da matéria e que Edith é que devia dar essas aulas. O ambiente ficou, de repente, tomado de um silêncio pesado. Eu havia tocado em algum tabu. Mais tarde, uma amiga me perguntou:

 - É verdade que você falou, na reunião, diante de todas aquelas pessoas, que Edith devia sair do gabinete e lecionar Educação Física?

– Falei, respondi, ela não é a professora desta matéria? Ela sacudiu a cabeça e ficou me olhando como se eu fosse de outro planeta. Eu havia cometido algum crime. Parece que a professora estava no gabinete por algum motivo especial, um tipo de graça concedida pela diretora, porque não gostava de lecionar.

            Entrei na escola através de nomeação em concurso público. As professoras que não eram efetivas no Estado, tiveram de enfrentar matérias para as quais não tinham o curso exigido pela Secretaria de Educação e todas sabiam que isso era ilegal e fonte de ressentimentos. Se uma pessoa dedica anos de estudo a uma determinada matéria é por algum motivo: facilidade de aprender, satisfação com o tipo de estudo, crença na importância e na divulgação dele. Se o professor ensina o que aprendeu e acredita, ele se sente, naturalmente, tranqüilo e seguro em sala de aula. Se tem em mãos uma matéria com a qual não está apto, torna-se inseguro e vulnerável.

Via a decepção e o cansaço tomando conta de toda a comunidade escolar. As brigas e reclamações aumentando, o ambiente se tornando tenso e competitivo. Tudo isso por causa de um jogo psicológico, de manobra e poder.

            Além das aulas de Educação Artística eu trabalhava, também, na biblioteca escolar e estava cheia de entusiasmo, acreditando na importância da leitura como fonte de saber e entretenimento. Pedi permissão à diretoria para promover excursões com os alunos para angariar fundos e comprar novos livros para a biblioteca. Ao chegarmos da última excursão, a diretora, diante de todos os professores, sugeriu que aquele dinheiro fosse entregue a ela para outra finalidade. Fiquei sem palavras. Mais tarde ela ainda perguntou por que eu parecia tão triste naquele dia...

 

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