quarta-feira, 19 de setembro de 2012

cap 3 Secretaria: Caixa de marimbondos

Caixa de marimbondos

 

A velha surda entrava em todas as conversas, no ambiente de trabalho. O pouco que um falava era esmiuçado, analisado, estudado e distorcido, criando uma versão totalmente diferente da realidade.

Era preciso um policiamento diário das palavras e atos. Com o tempo descobri que não podia nem mesmo falar de meus gatos. Algumas pessoas, mesmo sabendo que eu me referia ao animal vertebrado, chamado irracional que se comunica através de miados, felpudinho, chegaram a pensar que eu falava em código, me referindo a um ser humano. O jeito era economizar as palavras e a comunicação, concentrar-me em um trabalho burocrático, sem nenhuma finalidade prática.

Dizem que a pessoa abusada, fisicamente ou psicologicamente, tem um enorme letreiro na testa, convidando o algoz a entrar em ação. Um homem famoso, que sofreu abusos físicos, disse que é como uma mancha de sangue na água: o aproveitador, sem consciência ou piedade, enxerga de longe.

Três anos antes eu estava trabalhando em outra seção da Secretaria.

Tinha muitos problemas na família, doença mental de uma irmã e o ambiente de trabalho não era mais tranqüilo do que o familiar. Na minha casa havia discórdia, diferenças de opiniões, reclamações, cobranças e... muito amor e respeito mútuos. No trabalho havia hostilidade silenciosa, calada, velada, escondida sob sorrisos educados. Para ficar em equilíbrio, eu saía de casa antes das seis horas e ia ao Parque Municipal participar de aulas de tai-chi-chuan ao ar livre, com outros alunos. As aulas terminavam às sete horas e eu me encaminhava a pé para o trabalho, na Praça da Liberdade, na chamada Casa Rosada, apelido que as funcionárias deram à Secretaria, por ser pintada de rosa, comparando com a casa do Presidente da Argentina. Quando entrava na sala, não havia ninguém. Eu procurava o trabalho, que já estava guardado dentro dos armários e começava, enquanto as colegas não chegavam. Às vezes o colega de outro setor, Augusto, entrava, me cumprimentava, descia quatro degraus de escada e ia para sua sala no lado oposto do corredor. Raramente nos encontrávamos. A maioria das vezes ele já havia chegado antes de mim e só nos víamos na hora do cafezinho, quando todos os funcionários já haviam chegado.

Sempre tive pavor de fofocas e evitava qualquer possibilidade de namoro dentro e nas proximidades do ambiente de trabalho ou da escola. Além disso não havia ninguém que despertasse meu interesse nesse sentido. Dedicava-me ao trabalho e embora não acreditasse nele, tentava fazer o melhor possível, esperando algum reconhecimento ou no mínimo, um elogio. Meu irmão mais velho dizia detestar seu trabalho no banco e afirmava que sua mesa era a mais bonita e bem arrumada da seção. Tentávamos, assim, compensar a frustração de um trabalho que não trazia nenhuma realização pessoal, tentando fazer o melhor possível.

Naquela semana notei algo estranho no ambiente. Uma sensação de mal-estar tomava conta de mim, quando entrava na sala, no momento em que havia alguém trabalhando. A sensação piorava à medida que minhas colegas entravam e se sentavam em suas mesas.

Coloquei o retrato do meu namorado recente em cima da minha mesa. Elas se aproximaram, fizeram comentários, riram de sua falta de cabelos no alto da cabeça, elogiaram sua barba bem feita. Notei que algumas torceram a boca, ao verem a foto, como se duvidassem de sua veracidade. Na hora do cafezinho Augusto riu ao ver o retrato e passou a mão no alto de sua própria cabeça, também desprovida de cabelos e disse que meu namorado era do time dele.

No dia seguinte, Regina entrou, e, para nosso espanto, subiu em uma das mesas para poder olhar pela janela de basculante – nossa seção ficava no porão e disse:

- Marisa está na Praça da Liberdade, com Augusto.

Na praça? No horário de trabalho? – pensei

Marisa era a mais velha da seção, uma grande dama, educada e refinada, nossa mãe a quem buscávamos conselho e alguma palavra amiga. Ela entrou, em seguida e me disse:

- Augusto quer falar com você, na sala dele.

Achei aquilo muito estranho, fora do normal. O meu trabalho pertencia à Secretaria. Ele trabalhava para outro departamento. Apesar de ser dentro da mesma repartição, os dois setores eram independentes.

- Comigo? Na sala dele? – ainda perguntei.

- É, você mesmo. Está esperando.

Levantei-me, curiosa, atravessei a sala, desci os quatro degraus e me encaminhei para a sala dele. Encontrei-o em pé e me apontou uma cadeira.

- Sente-se, por favor.

- Eu? Sentar? – perguntei, completamente confusa.- ele não era chefe, nosso trabalho era independente, fiquei sem saber absolutamente nada do que poderia se tratar.

Sentei-me e esperei o que viria em seguida. À medida em que ele falava, pensamentos me cruzavam a mente. Ele falava de minha chefe, considerada grande amiga minha.

Esquizofrenia. Só pode ser isso. Muito agitada. Os sintomas estavam ali: falava demais, saía de um assunto e ia para outro.

- Ela está esquizofrênica, mentalmente enferma – falei

Ele dizia que minha chefe estava espalhando na Secretaria que nós dois éramos amantes. Augusto era casado e jamais tivemos nenhum interesse um no outro. Tive minhas tentativas de dar certo, de encontrar um companheiro, um namorado, sempre fora do ambiente de trabalho. Jamais havia dado nenhum motivo para esse tipo de especulações. Levantei-me, de repente.

- Desculpe, Augusto, mas não vou dormir com isso. Vamos lá, conversar com ela.

Ele só faltou pedir pelo amor de Deus.

- Não posso. Tenho filhos e esposa, preciso desse emprego – falou.

- Então, vou sozinha – respondi.

Ele implorava para eu não fazer isso, que havia sido difícil ser admitido naquele emprego. Que outros funcionários já tinham sido demitidos por romance no ambiente de trabalho. Que seu amigo Marcos, havia telefonado para ele, dando conselho, dizendo que ele não devia fazer isso com a esposa, que era boa mãe e companheira. À medida em que ele falava minha indignação aumentava. Essa era a paga de ser uma funcionária dedicada que tentava dar o melhor de si. Como me manter em silêncio, depois daquela injustiça?

Saímos juntos da sala e caminhamos até a sala de minha chefe, que ficava do outro lado do edifício. Ela jamais entrava no porão, no meu setor de trabalho. Quando queria alguma tarefa extra, enviava outra funcionária para me procurar. Entramos em sua sala, juntos, passamos pela recepcionista e a encontramos conversando com outra funcionária. Perguntei se era verdade que ela andou dizendo que eu e Augusto estávamos tendo um romance.

- Falei, sim. Isso já está fervendo há muito tempo por aí – ela disse – todos já estão sabendo.

Eu não a considerava uma chefe, mas minha amiga. Várias vezes a havia procurado para desabafar, principalmente dos problemas domésticos, a doença mental de minha irmã mais nova que tumultuava toda a família. Já havia passado por todos os psiquiatras de Belo Horizonte, os considerados melhores e a doença não dava folga, nenhum remédio a tirava de seus delírios.

Fiquei literalmente de boca aberta. Não esperava essa resposta dela. Que base tinha para saber o que se passava em minha sala? Como poderia sair por aí afirmando algo que ouviu dizer, sem antes procurar maiores informações? Por que não conversou comigo antes de sair espalhando um boato por aí? Não era minha amiga?

Perdi a cabeça e falei palavrões – coisa que jamais fiz na vida. Ela disse que quando há paixão as pessoas passam por cima de tudo.

- Eu não tenho dezoito anos! – gritei.

- Acho essas coisas naturais. – ela continuou – se vocês não têm culpa de nada por que vieram até aqui, me dar satisfações? – ela perguntou.

Se fosse natural não espalharia aquilo pela repartição inteira. Quem cala consente, não diz o ditado? Como permanecer em silêncio sabendo que aquela difamação corria pelo ambiente de trabalho? Eu era um verdadeiro Barnabé, cumprindo minhas obrigações, tentando fazer um bom trabalho, datilografando páginas lindas e perfeitas, observando a correção do português e a apresentação do trabalho, ficava quieta em meu canto, ignorando fofocas, deixando cada um viver como achasse melhor, só interferindo quando alguém me procurava com um problema e esse era o resultado?

Augusto dizia que tinha dois filhos e era fiel à esposa, mas as nossas palavras caíam no vazio. Ninguém acreditava ou queria acreditar. As pessoas adoram a lama, como certos animais chamados irracionais.

- Eu vou descobrir a fonte disso tudo – falei – Vou mover uma ação por calúnia e difamação e vou tirar até as cuecas de quem falou.

Ela olhou para mim com preocupação.

- Se fui injusta, peço desculpas, quer que eu telefone para o Marcos, explicando a situação?

- Quero, respondi, ela ligou e ele não estava – Marcos era o colega de sala de Augusto, o que o havia aconselhado, dizendo que sua esposa não merecia aquilo. Eu também não merecia. Nem Augusto.

- Acho que depois disso você vai ficar diferente comigo, ela disse, acho que  nossa amizade não vai mais ser a mesma.

De volta à minha sala observei as pessoas saindo de suas salas e olhando para o corredor, espantadas com o que estava acontecendo na sala da Neide e espantadas com minha atitude. Augusto continuou lá, conversando civilizadamente, sem perder a compostura, mantendo a política e o bom senso.

- Quanto vale uma ação contra difamação e calúnia? – perguntei à advogada que trabalhava na sala ao lado da minha.

- Isso depende, varia conforme o advogado estipular – respondeu. Por que? Você também foi prejudicada?

Também, também, também... a palavra também era um sinal de que havia alguma doença infecciosa contagiando o ambiente, que outros casos semelhantes já haviam acontecido...

Imaginei que estava recebendo a indenização da ação. Que pegava aquela bolada de dinheiro, juntava tudo no pátio da Secretaria, jogaria um pouco de álcool e ia vendo aquilo se queimar, nota por nota... enquanto o responsável por aquilo tudo colocava as mãos na cabeça.

Em casa, olhando as paredes do meu quarto, as peças do quebra-cabeças foram se encaixando.

Marisa, aconselhando;

- Jamais deixe nenhum bilhete escrito. Cuidado com as palavras. É preciso muito cuidado com o que se diz, comenta ou escreve dentro desse ambiente de trabalho.

Regina, semanas anteriores, convidando Augusto para ir à sua casa e ele se recusando, amavelmente. Ela morava sozinha.

Regina, me mandando abraçar Augusto, no dia do aniversário dele e olhando para mim, atentamente, estudando minhas reações.

Regina, dizendo às colegas que eu era muito boa para resolver os problemas dos outros, mas não sabia resolver os meus próprios problemas.

Regina, brigando comigo sem nenhum motivo aparente, como se eu tivesse feito algo ofensivo com ela.

Regina, apontando outra colega, da sala ao lado e dizendo que aquela era amante de homem casado... e ninguém discutindo, ninguém contradizendo, ninguém investigando, ninguém duvidando, mas a maioria aceitando a informação como verdade absoluta.

Minha colega mostrando Regina, no ano anterior e avisando:

- Ela trabalha em todos os setores da Secretaria, vive mudando e não se fixa em lugar nenhum e estraga todos os ambientes por onde passa.

E eu havia pensado:

 - Ninguém tem esse poder...

Mas tem... Povos foram dizimados por terem sido considerados inimigos, porque um disse e outro falou isto e aquilo e um terceiro derramou sangue inocente. Basta abrir o livro de História do Brasil ou História Geral: está tudo lá. Há centenas e milhares de fontes de informações sobre isso.

Outro fato me veio à mente. No último fim de semana meu namorado Dédio me levou para conhecer um apartamento que tinha no centro da cidade. Era bem pequeno, com dois cômodos, uma cozinha e um banheiro. Já era tarde da noite e quando saímos do elevador, depois de ver o apartamento, nos encontramos com um casal de colegas, amigos da Regina, no térreo. Os dois moravam ali e ficaram espantados ao me ver em companhia masculina, altas horas da noite. Fomos tratados como crianças travessas, ambos riam muito e meu colega deu pancadinhas na minha cabeça. Como Dédio e Augusto tinham uma grande calvície no alto da cabeça, ambos tinham mais ou menos a mesma altura, a descrição do meu acompanhante se assemelhava a de Augusto e isso provavelmente foi levado para Regina, que confundiu as duas pessoas e espalhou a novidade pela Secretaria inteira. Com a colaboração de minha chefe, meu nome foi para o lixo e o casamento de Augusto para a corda bamba.

E assim a amizade que existia entre nós duas foi para o ralo.

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